Em 2010 um Boeing caiu no Brasil. Em menos de 90 dias, ao menos sete cidades brasileiras enfrentaram – e algumas ainda enfrentam – a resposta dura e seca da Natureza para com o descaso, a omissão e a negligência de governantes de todos os matizes políticos e vertentes ideológicas. Mais de 330 brasileiros e brasileiras, crianças, jovens, adultos e idosos morreram soterrados por entre lajes de cimento e incúria e carradas de terra e vista grossa de nosso Brasil que, no palco da cena internacional, traz para si o almejado anseio de sediar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 e, no palco doméstico, começa a se dar conta de nossa incapacidade de proteger o que temos de melhor: nós, o povo.
São Paulo, São Luiz do Paraitinga, Angra dos Reis, Niterói, São Gonçalo, Rio de Janeiro. Alguns nomes do paradeiro de nossos infelizes passageiros do Boeing. Cidades com a alma fraturada e as vísceras expostas em redes de saneamento e esgotos precários, em bueiros sempre sem suas tampas e atravancados por lixo em profusão. Cidades que obrigaram parte de seus moradores, os do andar de baixo – aqueles de baixíssimo poder aquisitivo, que sobrevivem em condições desumanas, que mantém empregos informais e que trafegam pelas cidades como pingentes em trens apinhados vindos de subúrbios – a construir suas casas nas encostas dos morros, verdadeiros rochedos encobertos por frágil e insustentável vegetação, incapazes de absorver o dilúvio do céu precipitado.
Parece-me que a história das chuvas de Ranchipur passou a ser contada a partir de São Paulo na abertura deste ano novo e agora, qual circo mambembe trágico, muda sua locação para a cidade do Rio de Janeiro. Mesmo morando em Brasília, sentia a alma molhada pelas chuvas do Rio. Estava dentro dos ônibus encalhados nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas, escapei por pouco de novo desabamento no Morro 340, nas cercanias de Niterói, escutei a dor lancinante do jovem de 23 anos que acabara de constatar estar sozinho no mundo: as águas deslizaram pela encosta do Morro do Estádio e tragaram em sua fúria as vidas de sua mulher e de seu filho de 4 anos. Ainda em Brasília conseguia ouvir vozes anônimas e aflitas repetindo como mantra indiano: "Tá tudo alagado, tá tudo inundado. Tudo parado. A cidade acabou".
Pessoas vivas
Eu que sempre critico o que me parece errado ou torpe, infame ou desastrado, negligente ou omisso por parte dos meios de comunicação, eis-me aqui dizendo contrito que as Organizações Globo estão realizando um trabalho magistral de cobertura radiofônica e televisiva. Até os comentários da douta Lúcia Hippolito caíram bem, mostraram sensatez, afastaram-se do rame-rame do partidarismo explícito. O circunspecto e ainda assim afável Carlos Alberto Sardenberg mostrou sua humanidade em comentário bem dosado, vestido com roupa de gala da humanidade que nele aflora.
Foi na rádio CBN que escutei o alcaide carioca Eduardo Paes tranqüilizando a população, ordenando a vida da sociedade, repetindo com voz rouquenha o conselho que a população deve se abster de sair às ruas, que as escolas públicas estarão fechadas e os alunos deverão permanecer na segurança de suas casas. E pensei comigo, como que atingido por um raio: como é bom viver em uma cidade que não é administrada através do twitter, com suas mensagens secas, pingadas em 140 caracteres, mas transmitidas de dentro do aconchego do lar, próximo à cama quente e ao convidativo travesseiro. Como é bom conferir autoridade a quem autoridade tem para nos pedir que os meus e os seus se protejam das chuvas fazendo um feriado particular em nossa vizinhança.
O Jornal Nacional de terça-feira (6/4) entra para a história como exemplo de telejornal a serviço da população e da informação, a serviço dos melhores interesses da população afetada no estado do Rio de Janeiro. Havia humanidade em toda a cobertura. E comedimento, emoção, objetividade. O foco era promover o bem-estar da população e sua tranqüilidade. Haverá outro objetivo maior para um telejornal?
Diferentemente de outros desastres aéreos, aqui não se busca por caixas pretas nem por restos de aeronave. Aqui se busca por pessoas vivas e as ações de resgate querem atingir o que de mais valioso temos – a solidariedade e a união dos membros da nossa espécie. Afinal, um destino comum é o que temos a partilhar. E não há chuva que nos impeça disto.
(Por Washington Araújo, Observatório da Imprensa, 8/4/2010)