Imprevisível dizer como será o novo perfil do Pantanal caso os 116 projetos de centrais hidrelétricas forem instalados nessa região. De acordo com Débora Calheiros, “o que se sabe é que, muito provavelmente, irá mudar o fluxo natural das águas de cada rio, e, por conseguinte, do sistema Pantanal como um todo”. Ela concedeu à IHU On-Line uma entrevista, por telefone, sobre as ameaças colocadas ao Pantanal em nome da produção de energia em função do crescimento econômico do país. Débora respondeu também questões sobre o desmatamento e criação de gado na região, além do que ela acha que está em jogo quando se trata da implementação de centrais hidrelétricas e barragens. “Criar 116 barragens sem nenhum estudo prévio, em uma região que deveria ser conservada, que é patrimônio nacional e da humanidade, além de ser uma reserva da biosfera, é temerante. Por isso, nós pesquisadores junto das ONGs e a sociedade civil do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul alertamos para esta questão”, opinou.
Débora Calheiros é biológa e, atualmente, trabalha na Embrapa Pantanal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa, para o Pantanal, a instalação de 116 pequenas centrais hidrelétricas?
Débora Calheiros – Na verdade, são vários tipos de centrais, não só as pequenas. Existem as Usinas Hidrelétricas (UHEs) que têm potência superior a 30 megawatts, as PCHs, que têm potência de até 30 megawatts, e as Centrais Geradoras de Eletricidade (CGHs) que são menores ainda. Dessas 116, a maioria serão PCHs, mas também estão previstas as CGHs e as UHEs. Estamos preocupados com o efeito conjunto e cinérgico de todos esses empreendimentos nos rios formadores do Pantanal que estão ao redor do planalto.
Fizemos um workshop intitulado “A influência de usinas hidrelétricas no funcionamento hidroecológico do Pantanal Brasil”, na 8ª Conferência Internacional de Áreas Úmidas, a Intecol, que ocorreu em Cuiabá, em julho de 2008. Fizemos uma carta de recomendações que foi enviada a todos os órgãos envolvidos, tanto em nível federal quanto estadual. Agora o Ministério Público Federal também está atuando nesta questão, justamente para tentarmos fazer com que haja um planejamento e um estudos dos impactos de todo o conjunto de barragens que estão previstas. Atualmente, existem 29 barragens em operação, tanto grandes quanto pequenas, e 87 já em construção, licenciamento e sob estudo. O que queremos é evitar a mudança do pulso de inundação, dos ciclos de cheias e secas natural do sistema Pantanal.
IHU On-Line – Se forem instaladas essas PCHs no Pantanal, qual seria o novo perfil da região?
Débora Calheiros – É imprevisível. Como cada rio terá um regime diferente, por conta do funcionamento do regime da hidrelétrica, seja grande ou pequena, não temos como prever. O que se sabe é que, muito provavelmente, irá mudar o fluxo natural das águas de cada rio, e, por conseguinte, do sistema Pantanal como um todo. Por exemplo, a bacia do Rio Cuiabá, principal tributário do Rio Paraguai, é responsável por 40% da água do sistema. Esta bacia já tem barragens grandes em seus principais rios, o Manso, Itiquira, Correntes e São Lourenço.
Já temos evidências de que o curso de inundação já é alterado abaixo da cidade de Cuiabá, pela hidrelétrica de Manso. O conjunto dessas quatro hidrelétricas na mesma bacia é um problema. No fim dos rios Paraná e Paraguai, temos o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, que possui uma área ransa, além de ser uma unidade de conservação nacional. Temos que conservar esse ambiente. A mudança do pulso de inundação é um potencial importante para operar a ecologia da própria área do parque.
IHU On-Line – Neste momento, qual a situação do desmatamento na região do Pantanal?
Débora Calheiros – Na planície, ainda temos uma boa conservação do sistema, segundo dados do último levantamento realizado por ONGs, como WWF, TNC, SOS Pantanal e outras da região, junto com a EMBRAPA Pantanal. O levantamento na planície aponta que temos 15% de área alterada. No caso do Pantanal, não podemos falar só de desmatamento, pois não é só mata. A vegetação nativa inclui pastagens e arbustos. Falamos de supressão da área vegetal nativa. O problema está no planalto. No planalto secundante estão as nascentes dos rios, formadores do Pantanal. Nesta região do planalto, de 60% a 80% da área está alterada. Isto é muito preocupante, pois é um desmatamento que não respeita a nascente e não respeita a mata ciliar, em geral. Não respeita, também, o código florestal e as áreas de preservação permanente que conservam os rios. Os rios que formam o Pantanal estão comprometidos já na área de nascente. Na região de planície, ainda há conservação e boa qualidade ambiental, pelo menos por enquanto.
IHU On-Line – Em que áreas estão concentradas as criações de gado? Essas áreas modificadas em pastagens têm diminuido?
Débora Calheiros – Na região de planície, a maioria dos sistemas de produção agrícola é tradicional. Este sistema respeita o ciclo das águas e se utiliza, na maior parte, de pastagens nativas. O manejo do gado é feito conservando o ambiente, tanto é que temos um dos biomas mais conservados do Brasil. O problema é que as fazendas estão mudando de dono, que estão vindo de fora da região. Geralmente são pessoas de São Paulo e do Paraná que têm a cultura de desmatar tudo e colocar pastagens exóticas, como a braquiária, uma gramínea africana. Isso altera profundamente o ambiente, e não respeita a questão das APPs. O desmatamento é indiscriminado e temos evidências de que isso está aumentando. Hoje as áreas desmatadas estão em 15%, mas, em 1999, eram apenas 5%. A tendência é que aumente, justamente por que as fazendas estão mudando de dono.
IHU On-Line – O que está em jogo em relação à construção dessas PCHs?
Débora Calheiros – É a questão da ampliação da matriz energética do país. Só que as PCHs geralmente têm um licenciamento muito superficial e são muitas no mesmo rio. Uma PCH é uma coisa, mas várias no mesmo rio é praticamente uma grande barragem. Elas, em geral, são um fio d’água, ou seja, não criam reservatório de água, mas alteram o fluxo das águas. Embora não se tenha um reservatório, quando se tem muitas PCHs no mesmo rio, há uma variação na vazão e a retenção de nutrientes, o que altera a qualidade da água, e, por conseguinte, o funcionamento ecológico do rio juzante da barragem. Este é um problema sério, mas o maior problema é essa proliferação indiscriminada de barragens sem planejamento. Ainda mais no caso do Pantanal, uma área que deve ser preservada. Se fosse em um rio, em São Paulo, onde já encontram vários problemas ambientais, é uma coisa. Mas criar 116 barragens sem nenhum estudo prévio, em uma região que deveria ser conservada, que é patrimônio nacional e da humanidade, além de ser uma reserva da biosfera, é temerante. Por isso, nós pesquisadores junto das ONGs e a sociedade civil do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul alertamos para esta questão.
Uma reportagem de um jornal de São Paulo apontou que, recentemente, o presidente da empresa de pesquisa energética, a EPE, afirmou que eles vão realizar, finalmente, o estudo que estávamos pleiteando, a Avaliação Ambiental Integrada. Este é um estudo feito pelo setor elétrico para saber o efeito sinérgico de várias barragens em uma mesma bacia. Pela Resolução Conama de 1985, relacionada com estudos de impacto ambiental e com a lei de recursos hídricos de 1997, temos que trabalhar sempre com a visão de bacia hidrográfica. Não se pode licenciar um empreendimento sem ter a noção do que irá acarretar na área da bacia hidrográfica. No caso da bacia do Rio Paraguai, como ela é grande e possui vários empreendimentos, deve se fazer uma análise de todos eles em conjunto. O setor elétrico já tem esse tipo de análise, que já fizeram no Rio Uruguai e em outros rios do país, por isso, estávamos pleiteando, desde 2008, para que colocassem a bacia do Rio Paraguai como prioridade.
Uma outra solicitação que fizemos na carta de recomendações é que se faça, também, uma avaliação ambiental estratégica. Esta é uma outra ferramenta e poderia ser feita pelo Ministério do Meio Ambiente. Inclusive, anteriormente, já houve uma tentativa de se fazer estudo na região, quando existia o Programa Pantanal, atualmente não existe nenhuma política pública voltada para o Pantanal. O estudo começou a ser feito, mas não teve finalização, para ver a questão do desenvolvimento da bacia como um todo, incluindo principalmente a questão da industrialização pesada que existe aqui na região e não só para a questão das hidrelétricas. A avaliação ambiental estratégica tem uma visão geral do sistema e de opções de desenvolvimento sustentável para o sistema, levando em conta todos os fatores dos empreendimentos e os propósitos de desenvolvimento. Estamos pleiteando esses dois estudos profundos, para que possamos, pelo princípio de precaução, evitar que se altere um ecossistema tão importante mundialmente como o Pantanal.
IHU On-Line – Porque não se fez uma avaliação ambiental integrada da região anteriormente?
Débora Calheiros – Não tenho ideia. Sabemos que existem várias bacias já contempladas. Além do Rio Uruguai, existem outros como Trombetas, no Pará. No site da EPE, encontra-se a lista de todos os rios contemplados e os estudos completos. Estamos sugerindo o estudo desde 2008, e o próprio Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Mato Grosso do Sul e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente estão preocupados com essa problemática, que levantamos durante a realização do workshop. Questionamos, ainda em 2008, a EPE sobre essa questão. O problema é que 70% de todos esses empreendimentos estão previstos para a parte norte da bacia, no estado de Mato Grosso, e isso pode alterar o pulso de inundação e o fluxo das águas para Mato Grosso do Sul, que está rio abaixo. A preocupação mais evidente foi do estado de Mato Grosso do Sul. O Ministério Público Federal também se sensibilizou com a questão e está atuando. Provavelmente, agora, em abril, eles irão informar a decisão de que estão preocupados com essa questão e estão pedindo também que se façam estudos para que não haja problemas no futuro, na questão de conservação do Pantanal Matogrossense.
IHU On-Line – Ao analisar os projetos de eficiência energética em andamento no Brasil, como Belo Monte, o complexo do Rio Madeira etc., podemos dizer que o Brasil precisa mesmo de toda essa energia?
Débora Calheiros – Não sou exatamente do setor energético, trato da questão ambiental e acho que devemos, simplesmente, pensar se queremos ou não preservar o Pantanal. Se queremos produzir energia na região, que a energia seja gerada no Pantanal para suprir São Paulo, Rio Grande do Sul etc., temos que saber que teremos perdas, e uma delas é a conservação do Pantanal. A outra opção que temos, que até propomos na carta de recomendações, é que as barragens do Pantanal não sejam ligadas ao sistema interligado nacional. Uma vez que se precisa de energia em São Paulo, a hidrelétrica de Mato Grosso terá de fornecer energia para lá. O regime de águas e de fucionamento do reservatório não é regido pelo fluxo natural das águas, é regido pela demanda de energia. Se ele não tiver esse vínculo, de fornecer energia para fora do sistema, seria uma opção de ter um funcionamento mais ecológico. Se pode produzir energia, mas de uma forma natural.
Fora esta questão, ainda tem aquela da retenção de nutrientes, a barragem impede a migração dos peixes. O pulso de inundação para o ecossistema e a população da região pantaneira depende do fluxo das águas, tanto para os ribeirinhos e os pescadores, quanto para o turismo, que é baseado em pesca e pecuária. A pecuária tem atividades tradicionais e econômicas da região e dependem da forma ambiental do ecossistema. Então, se alterarem o pulso de inundação, alteram a vida, a economia e a questão social de toda a região pantaneira. Além disso, o Brasil é signatário das metas do milênio e, dentre essas existem as metas ecossistêmicas do milênio. As metas ecossistêmicas colocam claramente que não se pode pegar uma região, como uma bacia com ecossistema, e dela retirar todos os serviços ambientais possíveis. Se deve escolher alguns deles que serão usufruidos, como água de boa qualidade e pesca ou energia. Não dá para se tirar todos os serviços ambientais de uma região sem perdas. Ou optamos que a bacia do Alto Paraguai seja fornecedora de energia, ou optamos pela sua conservação e do Pantanal.
IHU On-Line – Numa entrevista anterior, a senhora revelou que um dos problemas que o Pantanal vem enfrentando é a introdução de espécies exóticas de animais. Como está essa situação hoje?
Débora Calheiros – Uma vez que a espécie exótica é introduzida em um sistema natural, é muito difícil que ela saia. Uma vez que ela se estabelece, ela se adapta ao ambiente. No caso do Pantanal, há espécies de peixes da amazônia, o Tucunaré e o Tambaqui, e alguns moluscos que são originários da China, o Mexilhão Dourado e a Corbícula. Esse é um problema que não se pode resolver, temos que conviver com isso. Há sempre um momento de explosão da população, já que não há predador, vírus ou bactérias que causem mortandade. A tendência é o aumento vertiginoso da população. No caso da bacia do Paraná e Paraguai, onde o Mexilhão Dourado foi introduzido através da Argentina, houve um problema seríssimo nas hidrelétricas desse sistema. Itaipu, por exemplo, tem um problema sério, que provavelmente demanda milhares de reais para poder limpar esses moluscos.
Como eles crescem rápido e vertiginosamente, sem predadores, eles acabam bloqueando as grades de proteção das turbinas, e os canos começam a fechar e a bloquear a passagem de água. Este é um problema sério, econômico e social. Na questão do Pantanal, este mexilhão é um pouco menos problemático do que na região do Rio Paraná, pois existe um fenômemo natural chamado Dequada, que acontece no processo de decomposição durante a enxente. A água transborda do rio, vai para a planície e há uma decomposição muito grande de plantas submersas. Isso abaixa o oxigênio, aumento o CO2 na água, essas espécies exóticas acabam morrendo e há um controle maior da população.
No caso do Rio Paraná, esta população explodiu de forma absurda e acabou se tornando um problema. Uma vez que se introduzem espécies, que não pertencem a uma bacia, e elas se adaptam, é muito difícil se controlar. Isto causa um desequilíbrio ecológico absurdo, pois essas espécies competem com as nativas por espaço e alimento, os peixes da região não estão acostumados a comer esses moluscos, e, quando comem, destroem o trato digestivo. Apenas algumas espécies já estão adaptadas para comer alguns moluscos nativos, e já têm dentes e um sistema digestivo apropriados. No caso dos peixes amazônicos é a mesma coisa. Eles competem com as espécies nativas e acabam desequilibrando as relações da cadeia alimentar. Infelizmente só vamos perceber a junção de todos esses problemas e impactos a médio e longo prazo.
(IHU-Online, 07/04/2010)