Há três anos no comando da Fundação Nacional do Índio, Funai, o paraense Márcio Augusto Freitas de Meira está à frente daquele que é considerado um dos pontos nevrálgicos do Governo Lula: a condução da política indigenista brasileira mais se assemelha a um barril de pólvora sempre prestes a explodir. Para muitos, com sua serenidade e conhecimento de causa, o antropólogo conduz uma das mais reconhecidas políticas indigenistas do mundo.
O modelo indigenista do Brasil é hoje copiado em vários países: sua população, que vive quase em sua totalidade (98%) na floresta amazônica, chama a atenção mundial. O atual Censo Demográfico do IBGE deve apontar uma população de mais de um milhão de índios distribuídos por todo o país. No Censo de 2000, esta população era de 750 mil índios. Segundo Meira, o crescimento entre os índios brasileiros é cinco vezes maior que na população geral do País. “Estamos em um período de queda da mortalidade e aumento da população”, revela. Confira entrevista cedida ao DIÁRIO:
Qual é a atual população indígena brasileira?
Temos dificuldade de ter dados precisos no Brasil sobre a população indígena. Este ano vamos fazer um censo, juntamente com o IBGE. Pela primeira vez vamos fazer um censo nacional que vai fazer a contagem também nas aldeias. Assim será possível saber precisamente a população indígena no Brasil.
Ainda existem povos isolados no Pará?
A diversidade no Pará é muito grande. O Pará é um estado grande, amazônico, onde a maioria da população indígena do Brasil vive e nós temos uma diversidade de povos indígenas muito grande, inclusive de povos isolados, que não têm contato com o ocidente. No Noroeste do Pará, por exemplo, temos referências de povos indígenas ainda sem contato.
Viver em contato com os não índios descaracteriza o indígena?
R: Na verdade a definição de quem é um indígena não se dá apenas ou principalmente por aquilo que nós, ocidentais achamos que os caracteriza e os identifica, que é a imagem que aprendemos na escola, que remete a uma imagem romântica. Carregamos muito uma idéia de que eles têm que viver na mata, caçando. Se ele não está com arco e flexa, se está com uma caneta, estudando na universidade, nossa tendência é achar que, quanto menos ele estiver próximo à mata e quanto mais próximo estiver de uma universidade ele perde a sua identidade indígena. Isso não é verdade. O que define a sua identidade é a sua maneira de encontrar soluções ou caminhos para a firmação de sua cultura, de sua língua de suas tradições. É óbvio que um povo de recente contato, de cerca de entre 20 e 40 anos de contato, que quase não fala o português é diferente de um povo que tem quase 400 anos de contato com o ocidente, que fala português, que muitas vezes até se esqueceu de falar sua língua. Mas sempre há algum elemento de sua identidade, de suas tradições que os faz diferente.
Qual é a população mais frágil hoje no Pará?
Eu diria que tem alguns povos que vivem em uma situação de conflito muito grande, como os índios Parakanã, na terra indígena Apyterewa, em São Félix do Xingu, ou os Araras que vivem na região de Cachoeira Seca. Ali existem muitos posseiros que ocuparam aquelas áreas nos anos 70 e 80 . Isso gerou um processo de desmatamento e ocupação ilegal. Nestes dois casos temos populações em situação de vulnerabilidade.
E quanto aos Parakanã que vivem em Tucuruí?
Eles estão protegidos. A Funai tem um convênio com o Programa Parakanã, financiado pela Eletronorte como forma de compensação pelo impacto provocado pela construção de Tucuruí. A terra Parakanã foi demarcada pela Funai.
Os Parakanã de Apyterewa têm algum tipo de proteção?
R: Sim, a terra indígena Apyterewa foi homologada pelo presidente Lula. Agora falta a retirada dos invasores que ainda estão lá dentro, para que a Funai desenvolva uma política. Até isso é difícil. Quando entramos na área, somos ameaçados pelos invasores ilegais. Os índios estão sofrendo ameaças. É por isso que eu considero essa população a mais vulnerável.
Isto nos remete à construção de Belo Monte. O indígenas têm se manifestado contra a construção...
R: Acho que em primeiro lugar é importante diferenciar o momento histórico em que foram construídas as usinas de Balbina e Tucuruí com o atual momento. Naquela época não existiam políticas ambientais. As exigências ambientais que existem hoje não existiam na época. A legislação indigenista é hoje muito mais forte. Aliás, as duas estão muito próximas: a indigenista com a ambiental, que têm um peso muito grande na proteção socioambiental. Belo Monte não pode ser colocada no mesmo patamar que foi Tucuruí e Balbina, que foram um escândalo na época. No caso de Belo Monte, o próprio projeto foi modificado em função destas exigências.
Mas não deixam de impactar. A população indígena que vive na curva grande do Xingu, por exemplo, vai ficar sem água...
Sim, não deixam de impactar, mas estas questões são justamente as que o Ibama, em suas manifestações, colocou como preocupações e como exigências de medidas que o empreendedor deve tomar para minimizar estas questões. Ou seja, que o impacto, que sempre acontece, seja acompanhado de todas as medidas cautelares.
Essas condicionantes não agradaram ainda as populações indígenas da região, que não querem a construção da usina...
A Funai não se ausentou em nenhum momento. Temos os registros de um vasto calendário de reuniões e encontros que foram realizados com os indígenas da região durante todo o processo de discussão de Belo Monte. Desde o primeiro momento, e antes até de qualquer começo até o presente momento a Funai acompanhou os encontros em todas as aldeias, de toda a região. Nós fizemos um Termo de Referência, que faz parte do estudo de impacto ambiental elaborado pelo Ibama, que é extremamente exigente. Condicionamos para que este Termo de Referência bem como o Estudo de Impacto Ambiental fosse apresentado aos índios nas aldeias, inclusive muito antes da realização das audiências públicas. Todas as informações foram realmente prestadas às populações indígenas.
Qual é a posição da Funai sobre Belo Monte?
A Funai tem uma posição clara e rígida. Não admitimos que qualquer empreendimento seja feito sem o cuidado e respeito à legislação. Todos os itens que a legislação brasileira tem sobre os impactos devem ser cumpridos. Nós cumprimos isso de forma muito rígida e vamos continuar cumprindo, afinal foi emitida apenas uma licença prévia pelo Ibama e vamos acompanhar atenciosamente. Ou seja, se de fato o empreendimento for feito, terá que ser feito de uma forma que permita que toda a população indígena daquela região se beneficie desse empreendimento.
Como a Funai vê o modelo de saúde indígena brasileiro?
Ele implantado no Brasil, criado por lei, que é o Subsistema de Saúde Indígena, que criou os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis). É um modelo de gestão participativa. Ele avançou muito em relação ao que era antes, tanto é que há um contraste quando se compara com as décadas de 70 e 80. É importante reconhecer isto. As campanhas de vacinação em massa são modelo para outros países. Não é a toa que a população indígena cresce cinco vezes mais que a média da população nacional. Mas é óbvio que toda política pública precisa sempre estar sendo aperfeiçoada. A Funasa [Fundação Nacional de Saúde, órgão responsável pelo atendimento à saúde indígena] não cuida apenas da saúde indígena. Ela é uma parte minoritária no orçamento. Por isso acho que em alguns estados não foram dadas as prioridades e atenção necessárias.
O senhor é favorável à criação da Secretaria de Saúde Indígena?
É necessário reconhecer que o Sistema de Saúde Indígena teve muitos avanços. A própria campanha de vacinação contra a H1N1 é um exemplo disso. Os indígenas foram colocados como prioridade nas etapas de vacinação. Mas a solução é realmente a criação da Secretaria Especial da Saúde Indígena. O modelo deve ser mantido, com autonomia dos Distritos de Saúde indígena. E acho que é também prioridade a realização de concurso público para a contratação de pessoal qualificado. Isto não é feito do dia para a noite.
O senhor sofreu recentemente forte pressão de lideranças indígenas da região de Altamira. O que aconteceu?
Foi falta de compreensão e entendimento. Havia uma notícia de que eu iria fechar a Funai de Altamira. Eu tive a oportunidade de me reunir com estas lideranças aqui em Brasília e pude explicar a eles a nova estrutura da Funai no Brasil inteiro. Eles perceberam que na verdade estamos fazendo uma mudança que vai melhorar nosso trabalho.
E quais são as mudanças?
Estamos criando coordenações regionais no Brasil inteiro, com autonomia, e ampliando para seis a nossa frente de proteção etnoambiental. No Pará estamos criando a Frente de Proteção Etnoambiental Médio Xingu. Já existe no Estado a Frente Cuminapanema, que cuida dos Zo’é. A nova frente do Xingu foi idealizada porque a região de Altamira necessita de um cuidado especial, devido à forte pressão do entorno: alto índice de desmatamento, violência, grilagem e projetos de duas grandes obras de infra-estrutura na região: a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e a BR 230. A frente Médio Xingu ficará responsável pela proteção das tribos próximas a Altamira.
(Diário do Pará, 05/04/2010)