Apesar dos sucessivos apelos e alertas da inviabilidade ambiental, econômica e social do Projeto, insensível, o “rolo compressor” da transposição do rio São Francisco funcionou efetivamente, tornando as obras irreversíveis, principalmente quanto aos impactos negativos que dificilmente serão reparados pelos próximos governos.
Para isso, o Ministério da Integração responsável pela obra, contando com a retaguarda do Exército Brasileiro, mobilizou todo o parque industrial da construção civil pesada do Brasil, envolvendo na empreitada mais de 5.000 máquinas e 10.000 operários em três turnos de trabalho diário numa frente contínua de 400 km de obras. Essa mega infra-estrutura, nesse último ano de governo e de eleição presidencial, contando com recursos orçamentários vultosos e forte motivação política, deverá concluir grande parte das obras mais comuns e de maior visibilidade dos eixos Norte e Sul do Projeto, abrangendo a construção de centenas de quilômetros de canais intercalados por aquedutos sobre os cursos de água maiores interceptados pela obra e dezenas de pequenos reservatórios – obras essas, apesar da grande dimensão do seu conjunto, corriqueiras para as grandes empresas nacionais de construção civil envolvidas no projeto.
O projeto pode ser comparado a uma grande estrada formada por canais de terra de 25 m de largura revestidos por uma fina camada de cinco centímetros de espessura de concreto, alimentados por grandes bombas para elevar as águas entre os degraus sucessivos, praticamente horizontais e com dezenas de quilômetros de comprimento. Os canais se desenvolvem serpenteando morro acima as encostas da margem esquerda da bacia do rio São Francisco até alcançar os divisores d’água dessa bacia com as bacias contíguas. Pelo Eixo Leste, ¼ das águas do Projeto chegarão ao rio Paraíba e através do Eixo Norte, o maior com capacidade de transportar ¾ da vazão total, os canais ultrapassarão o divisor da bacia do rio Jaguaribe e seguirão pelos pontos mais altos até encontrar condições de perfurar os divisores das bacias dos rios Piranhas no estado da Paraíba e Apodi no estado Rio Grande do Norte.
Vale ressaltar, entretanto, que toda essa conjugação de esforços não deverá garantir o sucesso do projeto que estará condicionado ao ainda distante término de todas as obras e, principalmente, ao desenvolvimento dos projetos em fase embrionária de utilização das águas transpostas e a sua gestão. Podendo-se, nesse caso, destacar a construção ainda não iniciada de 35 km de túneis. Isto é: parafraseando Carlos Drummond, no final dos canais têm algumas serras.
Para exemplificar, a água do Eixo Norte chegará aos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte através de 20 km de túneis, sendo o maior deles, o túnel Cuncas I com 9 m de diâmetro e mais de 15 km de comprimento, uma obra, por si só, sem precedente no País. Como referência, pode-se citar que o mais extenso túnel rodoviário do Brasil é o da pista descendente da Rodovia dos Imigrantes com 3,1 km e o maior túnel ferroviário da América do Sul é o Tunelão da Ferrovia do Aço em Minas Gerais, concebido a época do “Milagre Econômico” durante o regime militar com 8,7 km de extensão.
Apesar da propaganda oficial renomear “Projeto São Francisco: água a quem tem sede”, na prática, as obras reproduzem na íntegra o projeto tradicional do governo anterior, com a mesma infra-estrutura e orçamento, representando um dos maiores sistemas de bombeamento do mundo com capacidade de transportar 127 m³/s das águas do rio São Francisco para perenizar trechos inicia dos maiores rios da Região Nordeste Setentrional, visando aumentar precariamente os estoques ociosos de dez dos maiores reservatórios da região, reproduzindo, dessa forma, e em maior escala, o vício da “obra como um fim em si mesmo” da velha política hidráulica desenvolvida pelo Governo Federal no Nordeste Brasileiro desde o Império.
O projeto promete sustentar os consumos das bacias receptoras com as águas do rio São Francisco, desconhecendo, dessa forma, a grande infra-estrutura hídrica implantada em 100 anos de investimentos que tornou a região potencialmente auto-suficiente em recursos hídricos, capaz de atender plenamente todas as suas demandas, apenas necessitado para isso de uma infra-estrutura adequada de acesso as águas armazenadas nos grandes reservatórios espalhados por toda a região.
Vale ressaltar que, os consumos prioritários urbanos da região pretensamente beneficiada comprometem apenas 20% das águas regularizadas pelas grandes barragens, e que as bacias receptoras, principalmente do Eixo Norte, atualmente são grandes exportadores de água virtual via frutas, tais como melão e banana, e aquicultura de camarão, concorrendo com a bacia do rio São Francisco no mercado globalizado, com vantagens pelo menor custo de transporte e da água, insumo esse que será extremamente onerado pelo projeto, estima-se que a água da transposição terá um custo cinco vezes maior do que o atual custo praticado na região.
As obras e todo o processo de mobilização se concentram na bacia doadora, ficando a cargo dos governos estaduais desenvolverem os projetos de utilização das águas e assumirem a cara manutenção da grande infra-estrutura. Nesse cenário, vislumbra-se o grande risco de que concluídos os canais, dado o ritmo acelerado das obras, os mesmos deverão ficar ociosos e sem manutenção adequada por muitos anos.
Com o término das obras, junto com a saída das grandes empresas, cessará todo o processo de mobilização e os empregos temporários, ficando os canais com o seu destino incerto. Com certeza persistirá o lobby pela continuidade das obras, talvez essa seja a pior herança do projeto, fala-se na transposição do rio Tocantins para o rio São Francisco e na continuidade dos canais pelas bacias receptoras, e assim por diante, as obras da transposição não terminarão jamais, perpetuando a indústria das secas em prejuízo das políticas efetivas de desenvolvimento sustentado da Região.
João Abner Guimarães Jr. é Professor da área de Recursos Hídricos da UFRN
(EcoDebate, 06/04/2010)