Durante as 10 horas iniciais em que ficou disponível na homepage do Yahoo, minha coluna quinzenal de estréia teve 31 mil cliques e recebeu 113 comentários. "Sua coluna nos surpreendeu - não na qualidade da informação, óbvio, mas na popularidade", disse o gerente de conteúdo, Rafael Alvez. Ele reforçou o que Michel Blanco, autor do convite para que eu passasse a integrar a equipe de colunistas do portal: no Yahoo eu terei "um espaço livre, independente e democrático" para expor minhas idéias "e noticiar o que julgar relevante para a sociedade".
Volto a ter um espaço no mundo virtual, sete anos depois da Carta da Amazônia, coluna semanal que escrevi no portal da Agência Estado, do jornal O Estado de S. Paulo, durante dois anos, por iniciativa do então diretor da AE, Rodrigo Mesquita. Graças à interatividade no espaço virtual, pude sentir a receptividade do leitor e avaliar a distância que separa a Amazônia do resto do país, apesar do interesse e do esforço dos brasileiros para diminuir esse vácuo ou estabelecer uma ponte satisfatória entre os dois mundos. O mote da primeira coluna se mantém nesta segunda: mostrar que a Amazônia é muito mais complexa do que pensa a maioria dos seus intérpretes e as soluções não podem ser reduzidas a uma bula de sapiência dos salvadores da região - à distância. E o que é mais assustador: a desinformação sobre a região é quase total. Mitos e lendas não têm fim. Absurdos são descritos por quem se diz testemunha dos próprios fatos, simplesmente inexistentes.
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Estima-se que 1,5 bilhão de seres humanos já não disponham de água suficiente para suas necessidades essenciais. Significa que de cada 5 habitantes da Terra, um não tem água nem para beber. Esse contingente, que é superior à população do maior de todos os países pelo critério demográfico, a China, vai precisar resolver esse problema vital de alguma maneira. Pela via pacífica ou através da força. A próxima guerra será pela água, anuncia um número crescente de profetas, baseados mais na correlação lógica de fatores do que numa análise minuciosa e específica das situações.
Este é o mesmo método que utilizam para apontar o sítio dessa próxima guerra: a Amazônia. Nada mais lógico: a bacia amazônica, que se espraia por nove países da América do Sul, mas tem dois terços das suas águas drenadas no território do Brasil, representa 68% da massa de água doce superficial do nosso país e de 8% a 25% (conforme as diferentes avaliações) do total do planeta. Com uma área de sete milhões de quilômetros quadrados, é 10 vezes maior do que toda a América Central. Sua principal riqueza ou está escondida no subsolo, em depósitos de minérios, vários deles já em exploração ou mesmo exauridos, ou na sua floresta tropical, um terço do que ainda existe dessa mata primária sobre a superfície terrestre. E a mais rica em biodiversidade. Um tesouro difícil de ser protegido, sujeito a todas as formas de roubo.
A mais nova modalidade seria o saque ao bem mais massivo e de fácil apropriação. Seguidas denúncias, apregoadas pelas vozes mais distintas, têm assegurado que já seria "assustador" o tráfico de água doce da Amazônia para o exterior. O alerta mais recente foi feito no final do ano passado pela revista jurídica Consulex, editada em São Paulo. Ela garantia que algumas empresas já praticam com desenvoltura essa forma de roubo, que já tem pelo menos três denominações: hidropirataria, bioinvasão e biopirataria.
Uma advogada ouvida pela revista diz que, praticando esse comércio ilegal, haveria navios com capacidade de armazenar 250 milhões de litros (ou 250 mil metros cúbicos) de água, que uma empresa da Noruega forneceria para clientes na Grécia, Oriente Médio, Ilha da Madeira e Caribe. Por sair pela metade do custo da dessalinização, o roubo de água teria se tornado atraente no comércio com países carentes de água doce superficial. Tecnologias foram criadas para a retirada da água e o seu transporte, não só nos porões dos supergraneleiros, que transitam constantemente pela Amazônia como em balsas de água, puxadas por rebocadores convencionais.
A matéria da revista é rica em detalhes e conjecturas, mas não o bastante para convencer sobre o que relata, ecoando denúncias já numerosas. Claro que o acervo de água da Amazônia é questão transcendental. Exige atenção, seriedade, prioridade e investimentos. Todos esses elementos são de enorme deficiência atualmente. O Brasil tem mais de 120 comitês de bacia. Só um deles fica na Amazônia e tem ação urbana, na cidade de Manaus. É um despropósito paradoxal com o significado mundial da bacia amazônica.
Os escassos investimentos em manejo de água na região não permitem um conhecimento adequado sobre os seus recursos hídricos. O interesse mundial cresce numa velocidade muito superior à da atenção nacional - e não é por acaso. Mesmo as denúncias mais detalhadas, como a da Consulex, porém, ainda se revelam meramente especulativas, quando não totalmente fantasiosas. Devem servir de alerta porque o problema, embora ainda não exista, logo estará constituído.
Até agora, não há nenhum caso comprovado de roubo de água amazônica em território nacional, incluindo o mar de 200 milhas. Os grandes navios (1.200 por ano, dos quais pelo menos 200 fazem viagens constantes) entram na região em busca de outros recursos naturais, principalmente minérios e madeira, atracando em sete portos de grande ou mais significativa movimentação (Belém, Vila do Conde, Santarém, Oriximiná, Juruti, Óbidos e Jari). Não têm espaço característico - nem tonelagem necessária - para acumular água - e em escala comercial.
A única área que poderia proporcionar essa pirataria seria a foz do Amazonas, onde está a maior ilha fluvial do mundo, a de Marajó, com 50 mil quilômetros quadrados. Nesse delta, o grande rio chega a despejar mais de 200 milhões de litros (ou 200 mil metros cúbicos) de água por segundo, no auge da cheia. Não há qualquer caso concreto de um superpetroleiro que tenha estacionado nesse local para se abastecer de um volume como os 250 milhões de litros citados, com o propósito de transportá-los e vendê-los. Pode parecer muito, mas esse volume de água equivale a menos de meio segundo de descarga na vazão máxima natural que o rio Tocantins já alcançou no local onde foi construída a barragem da hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, em 1980.
Não parece um grande negócio, capaz de justificar o investimento e o risco, ainda que o patrulhamento da costa amazônica seja deficiente (o que induziu no projeto de criação da nova esquadra da Marinha, prevista para ter sua sede em São Luís do Maranhão e não em Belém, como pareceria mais lógico pela tradição histórica, se não houvesse limitações de calado em sua área, além de outras questões estratégicas e econômicas).
A Capitania dos Portos do Pará assegura que fiscaliza todos os navios que entram e saem da região e que, por amostragem, acompanha a qualidade da água que carregam em seus porões como lastro. As normas internacionais autorizam as embarcações a se desfazer da água que estocam em seu interior para lhes dar equilíbrio e repor esse volume no local de chegada para manter sua condição de flutuabilidade. É prática comum e nada tem a ver com objetivo comercial ou mesmo roubo com objetivo científico.
A água que o Amazonas despeja no Oceano Atlântico, depois de percorrer 6.500 quilômetros a acumular sedimentos pelo seu trajeto, é rica em material particulado em suspensão. Mas qualquer pequena coleta pode ser suficiente para um estudo completo sobre o que contém - e isso é feito por meios legais, normais e saudáveis (embora não na escala recomendável). Justamente por arrastar tanta matéria orgânica, sua estocagem em grande escala num porão de navio provocaria a deposição de lodo no fundo. O menor dos seus efeitos seria desfavorecer a comercialização da água na forma de produto potável. Quanto ao uso para outros fins, pelo menos para a costa dos Estados Unidos o Amazonas já dá sua contribuição em larga escala e gratuita. Avançando até 100 quilômetros no oceano, suas águas derivam para o norte pela força da corrente marítima (o Gulf-Stream). Segundo alguns, pode chegar até o litoral da Flórida. Fenômeno que leva alguns autores a, nem sempre de forma bem humorada, como convinha, acusar o grande rio de ser entreguista.
Se não é para nos roubar água potável, então essa pirataria seria para recolher água rica em nutrientes para algum objetivo ainda não identificado (e, talvez, jamais identificável, por irreal). Por enquanto, considerando o que se sabe sobre o que a água do Amazonas contém, não dá nem para supor qual seria esse propósito oculto ou misterioso. O campo ainda está aberto à imaginação e à especulação. Para delimitá-lo, a melhor atitude para o bem do país é, sem deixar de se manter atento, investir no conhecimento dos nacionais sobre sua própria riqueza, ao invés de ir atrás do bloco da conspiração e da fantasmagoria. Com evoluções ao meio-dia.
O Brasil deve acompanhar com atenção e sempre com atualização o que pensam (e o que fazem) os estrangeiros sobre a - e na - Amazônia. Dispondo de mais recursos e com objetivos mais bem definidos, eles podem servir de espelho para refletir melhor o que os brasileiros e, em particular, os amazônidas, nem sempre conseguem ver, por falta de meios humanos, técnicos e científicos equivalentes.
O mais importante, porém, é saber e acompanhar o que os próprios nacionais pensam ou fazem, em numerosos casos dilapidando os recursos naturais ou os utilizando de forma irracional. Campeão em estoque de água doce do mundo, o Brasil é medíocre no seu manejo. Em Belém, a metrópole da Amazônia, que, por sua localização, serve de porta de entrada à região, um dos problemas que sua população -de quase 1,5 milhão de habitantes- enfrenta é a falta de água para beber com qualidade comprovada ou mesmo crível, apesar da vasta massa de água que forma o estuário onde a cidade se situa. Este é o triste paradoxo atual, cuja visualização e compreensão as sempre vivas teorias conspirativas dificultam.
(Por Lúcio Flávio Pinto, Adital, 05/04/2010)
* Jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP)