O Superior Tribunal de Justiça (STJ) está inovando a jurisprudência sobre o meio ambiente e, com isso, mostra que acompanha de perto as demandas de uma sociedade cada dia mais comprometida com a qualidade de vida da coletividade. Esta nova visão que objetiva a proteção ambiental começou a se formar em 1992, na Conferência das Nações Unidas (ONU) sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), que aconteceu no Rio de Janeiro, na qual o conceito do Princípio da Precaução foi formalmente proposto como parâmetro para análise de ações judiciais envolvendo questões relativas a possíveis danos contra os recursos naturais, renováveis ou não.
O Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. Esse princípio afirma que, na ausência da certeza científica formal, a existência do risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever esse dano. Ou seja, o meio ambiente deve ter em seu favor o benefício da dúvida sobre o nexo causal (relação de causa e efeito) entre determinada atividade e uma consequência ecologicamente degradante.
A questão ambiental traz implicações complexas e polêmicas que englobam não apenas a poluição de rios e mares, as queimadas ou a devastação de florestas, mas também o modo como as indústrias fabricam seus produtos (de forma limpa ou “suja”?) e até mesmo a comercialização de alimentos geneticamente modificados. No Brasil, esses temas ganharam relevância jurídica, pois o direito de viver num ambiente ecologicamente equilibrado foi elevado à categoria de Direito Humano Fundamental pela Constituição Federal de 1988. Daí a importância do Princípio da Precaução, que incentiva a antecipação de uma ação preventiva, ainda que não se tenha certeza sobre a sua necessidade, proibindo, por outro lado, as atuações potencialmente lesivas, mesmo que essa potencialidade não esteja comprovada de forma cabal pelas perícias técnicas.
Administrando riscos
Com base nessas premissas, a Primeira e a Segunda Turmas do STJ vêm analisando recursos em ações civis públicas propostas pelos ministérios públicos em que há o pedido de inversão do ônus da prova. Em um recurso especial envolvendo a empresa Amapá do Sul S/A Artefatos de Borracha, o MP do Rio Grande do Sul recorreu ao Tribunal da Cidadania contra decisão da segunda instância que entendeu ser dele a responsabilidade de comprovar a ocorrência do dano ambiental provocado pela fábrica, uma vez que era o autor e requerente da realização da perícia, juntamente com a Fundação Zoobotânica daquele estado.
Em sua defesa, o MP argumentou: “A inversão do ônus da prova decorre diretamente da transferência do risco para o potencial poluidor, remetendo ao empreendedor todo o encargo de prova que sua atividade não enseja riscos para o meio ambiente, bem como a responsabilidade de indenizar os danos causados, bastando que haja um nexo de causalidade provável entre a atividade exercida e a degradação”.
Invocando o princípio da precaução, o MP conseguiu a inversão do ônus da prova. A tese foi acolhida pela ministra Eliana Calmon, que assim fundamentou o seu voto: “No caso das ações civis ambientais, entendo que o caráter público e coletivo do bem jurídico tutelado nos leva à conclusão de que alguns dos direitos do consumidor também devem ser estendidos ao autor daquelas ações, afinal tais buscam resguardar ou reparar o patrimônio público de uso coletivo. Portanto, a partir da interpretação do artigo 6º da Lei n. 8.078/1990 e do artigo 21 da Lei n. 7.347/1985, conjugado ao Princípio da Precaução, justifica-se a inversão do ônus da prova, transferindo para o empreendedor da atividade potencialmente perigosa o ônus de demonstrar a segurança do empreendimento”.
Vale ressaltar que a obrigação de provar da empresa não pode ser confundida com o dever do MP de arcar com os honorários periciais nas provas que o próprio órgão solicita para fazer valer a denúncia de dano ambiental. Para o ministro Teori Albino Zavascki, integrante da Primeira Turma, são duas questões distintas e juridicamente independentes. “A questão do ônus da prova diz respeito ao julgamento da causa quando os fatos não restaram provados. Todavia, independentemente de quem tenha a obrigação de provar esta ou aquela situação, a lei processual determina que, salvo as disposições concernentes à Justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo. Portanto, conforme estabelece o Código de Processo Penal, o réu somente está obrigado a adiantar as despesas concernentes a atos que ele próprio requerer. Quanto aos demais, mesmo que tenha ou venha a ter o ônus probatório respectivo, o encargo será do autor”.
Um caso analisado na Segunda Turma envolvia o pedido do MP para a realização de uma auditoria ambiental proposto pelo Relatório de Impacto Ambiental (Rima) com o objetivo de apurar os efeitos da poluição produzida pela Usina Termoelétrica Jorge Lacerda, na cidade de Capivari de Baixo/SC sobre os habitantes do município, bem como para a implantação de medidas de minimização dos danos imposta pelos órgãos de proteção ambiental.
O consórcio que gere a usina, a Tractebel Energia S/A, recorreu STJ porque o MP pretendia que a empresa custeasse as despesas com a prova pericial (honorários periciais). Entretanto, após longo debate e pedidos de vista, os ministros, por maioria, acompanharam o voto da ministra Eliana Calmon, que assim esclareceu: “O meu entendimento é de que toda e qualquer empresa precisa, para funcionar, submeter-se às exigências administrativas, dentre as quais o atendimento às regras de proteção ambiental. Ora, a legislação determina que a empresa seja responsável por esses estudos e pela atualização, devendo ser chamada para assim proceder sob as penas da lei e, por último, se descumprida a ordem, pedir-se a intervenção judicial, esta a última trincheira a ser perseguida em favor da ordem social”.
Todavia, explicou a ministra, não ficou demonstrado que a empresa estaria se negando a cumprir a lei e, mesmo que tivesse, ela não poderia ser obrigada a fazer uma auditoria que só a sentença final, se ficasse vencida, determinasse. “Prova é prova, pretensão é pretensão, mas aqui temos uma ação civil pública com causa de pedir bem definida, a se exigir, no curso da demanda, a pretensão final como prova (a realização do estudo de impacto ambiental), atropelando-se o fim do processo. Em relação ao adiantamento das despesas com a prova pericial, a isenção inicial do MP não é aceita pela jurisprudência das Primeira e Segunda Turmas, diante da dificuldade gerada pela adoção da tese. Imponho ao MP a obrigação de antecipar honorários de perito, quando figure como autor na ação civil pública”, concluiu.
Melhor prevenir que remediar
A Primeira Turma, sob a relatoria do ministro Francisco Falcão, julgou o recurso da All-America Latina Logística do Brasil S/A contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul determinando a inversão do ônus da prova em uma ação civil pública que discutia serem as queimadas decorrentes das fagulhas geradas pelo deslocamento das composições ferroviárias da empresa responsável pelo transporte da produção agrícola daquele estado.
Em seu voto, o ministro transcreveu trechos da argumentação do representante do Ministério Público Federal que balizaram o julgamento da controvérsia: “O meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos, protegido pela própria Constituição, que o considera ‘bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida’. É o que os autores chamam de direito de terceira geração, que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano. A responsabilidade para os causadores de dano ambiental é, portanto, objetiva, obrigando o poluidor, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade”.
Para Francisco Falcão, o princípio da precaução sugere que o ônus da prova seja sempre invertido de modo que o produtor, empreendimento ou responsável técnico tenha que demonstrar a ausência de perigo ou dano decorrente da atividade em que atuam. Afinal, “é melhor errar em favor da proteção ambiental, do que correr sérios riscos ambientais por falta de precaução dos agentes do Estado”.
Como se pode observar, a tendência do STJ é estabelecer a inversão do ônus da prova nas ações civis públicas propostas pelo MP para resguardar o meio ambiente das constantes agressões por parte das indústrias poluidoras e também dos municípios que não tratam dos seus aterros sanitários e dos dejetos de esgotos que poluem mananciais, lençóis freáticos e demais fontes de água potável e solo para o cultivo. A proposta é que as causas envolvendo direito ambiental recebam tratamento realmente diferenciado, porque, como explica o ministro Herman Benjamin, a proteção do meio ambiente “é informada por uma série de princípios que a diferenciam na vala comum dos conflitos humanos”.
De acordo com o ministro, o princípio da precaução inaugura uma nova fase para o próprio Direito Ambiental. “Nela já não cabe aos titulares de direitos ambientais provar efeitos negativos (ofensividade) de empreendimentos levados à apreciação do Poder Público ou do Poder Judiciário, como é o caso dos instrumentos filiados ao regime de simples prevenção (exemplo: estudo de impacto ambiental). Impõe-se, agora, aos degradadores potenciais, o ônus de corroborar a inofensividade de sua atividade proposta, principalmente naqueles casos nos quais eventual dano possa ser irreversível, de difícil reversibilidade ou de larga escala”.
Herman Benjamin acredita que o emprego da precaução está mudando radicalmente o modo como as atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente estão sendo tratadas nos últimos anos. “Firmando-se a tese – inclusive no plano constitucional – de que há um dever genérico e abstrato de não degradação ambiental, invertendo-se, nestas atividades, o regime da ilegalidade, uma vez que, nas novas bases jurídicas, esta se encontra presumida até que se prove o contrário”.
(Por Celso Galli Coimbra, STJ, 22/03/2010)