Os quilombolas do Espírito Santo estão exaustos de aguardar Justiça do poder público Estadual. Após anos de abusos contra os negros, em maio de 2009, foi prometido a eles, pela então subsecretaria de Inteligência da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp), Fabiana Maioral, que o seria investigado. Entretanto, em novembro do mesmo ano, 28 quilombolas foram presos de forma arbitrária. A ação, por sua vez, resultou na visita do ouvidor geral da Segurança Pública, Sandro Chamon, que também não mudou em nada a situação.
Segundo o relatório da Ouvidoria Geral da Segurança Pública e Defesa Social (SESP) divulgado apenas esta semana, a visita à comunidade quilombola de São Domingos, em Conceição da Barra, norte do Estado, ocorreu no dia 30 de novembro de 2009, a pedido do vice-governador Ricardo Ferraço e constatou que, além de lideranças quilombolas, foram presas também várias pessoas da comunidade.
As prisões ocorreram no dia 11 de novembro de 2009 e foram feitas por homens da Polícia Militar de Vitória, em viaturas e a cavalo, conduzindo cães e com homens fortemente armados com o apoio de milicianos da Garra, segurança armada da ex-Aracruz Celulose (Fibria). Além das prisões, os policiais apreenderam máquinas e veículos de propriedade da comunidade sob a acusação de roubo de eucalipto da ex-Aracruz Celulose.
A cena, descrita pelos quilombolas, nada mais é do que a repetição diária da situação vivida pela população quilombola do norte do Estado. Com suas terras ocupadas pela ex-Aracruz Celulose, eles se vêem limitados a catar restos dos eucaliptos deixados pela empresa para poderem sobreviver. Esta foi, inclusive, uma condição dada pela empresa na tentativa de calar as comunidades que reivindicavam suas terras de volta. Sem solução, e com a luta pelo reconhecimento das terras quilombolas avançando, a empresa mudou de tática e passou a criminalizar a luta quilombola, acusando os negros catadores de restos de eucalipto de roubo.
Sem a mata e com rios poluídos, a cata dos restos do eucalipto para a produção de carvão e a venda do beiju são os únicos meios de subsistência destas famílias. O conflito entre a ex-Aracruz Celulose (Fibria), que conta com o apoio da Justiça local, é cada vez mais violento e injusto contra os negros,
Em 11 de novembro de 2009, quando ocorreram as prisões, por exemplo, a ação truculenta contra os negros da comunidade quilombola de São Domingos foi autorizada pelo juiz Marcos Antônio Barbosa Souza, de Conceição da Barra.
Consta que os negros presos foram apontados aos policiais pelos milicianos da Garra. “Eles chegaram pela manhã em dois ônibus e muitas viaturas. Até a cavalaria veio junto, e havia cachorros também. Tem mais polícia aqui do que vemos lá nos morros do Rio de Janeiro. Levaram menores de idade e a filha de um de nós levou um tapa na cara de um dos policiais”, denunciou um dos quilombolas.
Na ocasião, sobre a prisão dos negros, nada foi informado. Apenas foi dito que os policiais vieram de Vitória para cumprir mandados de prisão sob a alegação de que os quilombolas estariam extraindo de forma ilegal os eucaliptos da área da empresa.
Entretanto, o próprio relatório da Ouvidoria Geral aponta para outro lado. Segundo o documento, a violência empregada contra as comunidades foi desnecessária, principalmente pela humildade dos membros da comunidade.
O relatório afirma que durante a visita foi possível constatar que as famílias quilombolas estão a serviço da comunidade onde prevalecesse o interesse comum. “Pudemos observar que não que existem coisas supérfluas e que contentam-se com muito pouco, se comparados com os que vemos na cidade. Seus hábitos e costumes se interagem com a natureza, sentem-se parte dela e dela cuidam com a mesma dedicação e carinho que dispensam uns aos outros”.
Além disso, o documento mostra os depoimentos dos quilombolas que denunciam que, além de presos, foram submetidos a invasão de suas residências, quando homens, mulheres e crianças foram humilhadas com palavras de baixo calão e agressões físicas. “Qualquer um que passasse a pé ou de bicicleta era preso colocado junto algemado junto a outros presos no campo de futebol da comunidade. Dalí eram levados à delegacia de Polícia de São Mateus”. Consta nos relatos a participação de policiais de Nova Venécia, Barra de São Francisco e Vitória.
A arbitrariedade na ocasião foi tanta que os presos não puderam ser mantidos na cadeia, já que, apesar dos mandados de busca expedidos pela Justiça de Aracruz, nada foi encontrado para incriminá-los.
Segundo o relatório do ouvidor Sandro Chamon, foi reconhecido que os quilombolas, todos remanescentes dos primeiros africanos que aqui chegaram, ocupavam as terras livremente até que nas décadas de 60 e 70, com a chegada da então Aracruz Celulose, hoje Fibria, algo em torno de 5 mil famílias foram obrigadas a se mudar para a Grande Vitória, e praticamente desaparecerem. Atualmente, restam apenas 1.500 famílias quilombolas no Estado, divididas em dezenas de comunidades e, todas, sofrem com o mesmo problema de criminalização da luta pelo retorno as suas terras de origem.
Ainda assim, o reconhecimento não saiu do papel. Nada foi feito para coibir a empresa sobre as acusações feitas contra os negros, assim como o apoio que recebe da Justiça e da Polícia Militar para defender seus interesses, nem para proteger os quilombolas que continuam expostos as agressões na região.
Ao todo, 38 comunidades quilombolas vivem na região do Sapê do Norte, entre os municípios de Conceição da Barra e São Mateus. Destas, apenas oito têm processos em andamento para que as terras sejam reconhecidas e tituladas como terras tradicionais. O quadro na região é de miséria e desrespeito para com os negros que vivem ilhados entre eucaliptos, com os rios do entorno poluídos por agrotóxicos e à mercê das secas devido à degradação ambiental gerada pela monocultura na região.
(Por Flavia Bernardes, Século Diário, 31/03/2010)