Índios se dizem preocupados com obra; governo diz que rio não secará. G1 ouviu engenheiros, biólogo e socióloga sobre impacto da hidrelétrica.
Especialistas das áreas de engenharia, biologia e sociologia consultados pelo G1 afirmam que o trecho de cem quilômetros da Volta Grande do rio Xingu, no Pará, será prejudicado com a construção da hidrelétrica de Belo Monte, projetada para ser a segunda maior usina do país e cujo leilão para definir os construtores da obra está marcado para o dia 20 de abril.
A reportagem visitou a tribo indígena Arara, na Volta Grande, e os índios manifestaram a preocupação de que o rio possa secar. O governo, no entanto, afirmou que a vazão pode ser reduzida com a instalação da barragem, mas que o rio não secará e a navegabilidade não será afetada.
Quatro especialistas foram consultados: dois engenheiros são favoráveis à obra e um biólogo e uma socióloga são contrários. No entanto, três deles sugerem mudanças no projeto da usina para que a população da Volta Grande não seja gravemente afetada.
Segundo dados do governo, o rio Xingu perde vazão – quantidade de água - no verão, época de seca. Por conta disso, a expectativa é de que Belo Monte, que terá capacidade instalada de 11.233 MW, tenha uma geração média de 4,5 mil MW. Em época de cheia pode-se operar perto da capacidade e, em tempo de seca, a geração pode ir abaixo de mil MW.
O biólogo Hermes Fonseca de Medeiros, doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), diz que, com a instalação da barragem antes da Volta Grande, a água que normalmente segue para aquela região terá vazão reduzida a ponto de impossibilitar a reprodução de peixes e favorecer a proliferação de doenças.
Fonseca analisou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte juntamente com 40 especialistas de várias áreas - ele se aprofundou nos aspectos de impacto para a fauna que habita as águas do Xingu.
O EIA, com mais de 20 mil páginas, contém o projeto da hidrelétrica no qual o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) se apoiou para conceder, com condicionantes, a licença ambiental para a usina. Entre as condicionantes, está a necessidade do empreendedor de monitorar a vazão da água na Volta Grande para não prejudicar as populações indígenas e ribeirinhas que vivem nas margens.
"Em mais de cem quilômetros do rio [na Volta Grande], há corredeiras, terras indígenas, ribeirinhos, e a vazão vai descer tanto com a barragem que os peixes podem não conseguir se reproduzir. E essas pessoas dependem da pesca para sobrevivência, alimentação. Não vai mais ter Xingu na Volta Grande, vai ter um filete de água. Os moradores não terão como navegar. Em época de seca, devem se formar grandes poças que podem produzir focos de doenças, como a malária. Os índios e não índios da Volta Grande estão condenados a enfrentar uma situação que ninguém pode prever."
O biólogo diz ainda que dentro do plano de mitigação, que prevê compensação pelos danos ambientais e sociais, não há previsão de ações pelo empreendedor, mas somente o monitoramento da situação. "Não há compromisso permanente em compensar os problemas que forem surgindo. Quando se diz que a energia elétrica das hidrelétricas é mais barata é porque o povo paga as consequências e o Brasil empobrece. Você perde uma nação se você perde a biodiversidade."
‘Conflito’
Para a doutora em Antropologia e Sociologia Sonia Maria Magalhães, professora da UFPA que coordenou o painel de especialistas que analisou o EIA, pode haver um "conflito" no uso da água ao se optar entre gerar energia e manter o mínimo para a Volta Grande. "Mesmo supondo que o mínimo seja assegurado, estarão modificadas todas as condições de vida no rio, cujas vazões naturais serão substituídas por vazões artificiais drasticamente diferentes e sequer garantidas."
Sônia avalia que falta informação para a população afetada pela obra, principalmente a que será deslocada. "Efetivamente não há nem informação suficiente nem a divulgação necessária das consequências, riscos e incertezas. Num empreendimento deste porte, a informação e a divulgação necessárias devem chegar a todos e, sobretudo, àqueles que dispõem de menores condições para acessá-las e processá-las. Mais especialmente aqueles que sofrerão a tragédia do deslocamento compulsório. (...) Em minhas pesquisas pude concluir que o deslocamento compulsório é uma das maiores tragédias que pode ser vivida por um grupo social, similar apenas aos episódios de guerra. Estamos, pois, no anteato de uma tragédia social."
O G1 conversou com agricultores, índios e ribeirinhos da área do Xingu que alegaram falta de informações sobre a obra. O governo informou que todas as famílias que serão retiradas de suas casas já foram avisadas e serão indenizadas ou receberão outro imóvel.
Secretário-geral do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina), o engenheiro Luiz Pereira de Azevedo Filho também ressaltou que a Volta Grande do Xingu "vai ficar praticamente vazia". "Devido aos dois canais que serão abertos, em época de estiagem quem mora na Volta Grande vai ter prejuízo. Aldeias indígenas e os ribeirinhos serão atingidos. Era melhor ter feito uma obra menor que não prejudicasse tanto a população local."
Para Azevedo Filho, porém, Belo Monte é necessária pensando no futuro do país. "Evidentemente que Belo Monte pelo seu porte, potencial, é necessária pensando em termos de futuro para o fornecimento de energia no Brasil. Vai ser a usina nacional com maior potência, já que Belo Monte é binacional. Mas creio que foram cometidos muitos erros, não precisava correr tanto com essa obra, podia ter discutido mais com a população local. O governo atropelou tudo."
Ao G1, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, informou que todas as audiências públicas necessárias foram cumpridas.
Seca independe da obra
A engenheira Brígida Ramati, professora da Faculdade de Engenharia Elétrica da UFPA e coordenadora de um grupo de pesquisa sobre Planejamento Energético na Amazônia, afirmou ao G1 que a seca no Xingu pode ocorrer independentemente da hidrelétrica de Belo Monte.
"Isso pode acontecer mesmo sem a construção da barragem. Fenômenos de mudanças climáticas afetam o índice pluviométrico e isso pode acarretar secas. Se a hidrelétrica for construída, um período de seca secará o rio e, portanto, secará a Volta Grande. Se não houverem períodos de seca, os rios continuarão com aporte de água e a Volta Grande continuará recebendo água."
Brígida acrescenta que Belo Monte é necessária para atender ao crescimento da demanda por energia no Brasil. "A energia gerada deverá atender a uma área muito mais ampla do que a área de impacto direto pois a energia é um dos insumos mais estratégicos para o crescimento de uma região. No caso a região de abrangência da energia gerada inclui o pais todo pois a demanda de energia cresce no país a índices maiores que o crescimento do PIB e da população."
Para ela, as hidrelétricas emitem menos gases poluentes e, em sua opinião, devem ser privilegiadas. "A opção pela fonte hídrica, quando possível, representa uma garantia de estabilidade no fornecimento de energia a preços muito razoáveis sendo estratégico para o crescimento de qualquer pais."
Novas barragens no Xingu
O biólogo Hermes Fonseca de Medeiros destacou que Belo Monte pode gerar uma pressão por nova barragem no Rio Xingu, antes de Belo Monte. Isso porque uma nova barragem poderia aumentar o volume do rio entre as duas, e Belo Monte teria mais água para gerar energia.
"Em dez anos, pode haver aumento de pressão para novo barramento. Se o Brasil precisar de energia e Belo Monte estiver produzindo pouco, eles podem tomar essa decisão. E a população que vier para a região em busca de trabalho na hidrelétrica de Belo Monte que não conseguir novo emprego, também vai pressionar por uma nova obra."
Consultado pelo G1, o Ministério de Minas e Energia informou que o governo não planeja novas hidrelétricas no Xingu. "Não há previsão de novas usinas no Rio Xingu. O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) definiu que Belo Monte será o único aproveitamento hidrelétrico no rio", respondeu o ministério por e-mail.
(Por Mariana Oliveira, G1, 27/03/2010)