O método de agressão mais discutido é a monocultura da celulose. O plantio de árvores exóticas causa grande impacto na biodiversidade pampeana.
“Meu canto crioulo é igual a pasto nativo, que brota com força e se estende na Pampa”. Infelizmente, o bonito verso da música “Regional”, da dupla César Oliveira & Rogério Melo, cantores nativistas naturais da fronteira do Rio Grande do Sul, está ficando cada vez mais longe da realidade. O pasto nativo está perdendo cada vez mais espaço para as plantações de árvores exóticas, principalmente o eucalipto e a acácia negra. A vegetação rasteira típica da campanha já não se estende sobre a Pampa. A bela paisagem típica do gaúcho, com amplas planícies, compostas ainda de coxilhas, areais e capões de mato, com uma rica fauna silvestre, está sob ameaça.
O Bioma Pampa
A palavra Pampa provém do dialeto indígena quéchua, língua utilizada por diversas tribos da Ameria Latina, e designa a região pastoril composta pelas planícies e coxilhas. Esta área se estende por 750 mil quilômetros quadrados e abrange a Argentina, nas províncias de Buenos Aires, La Pampa, Santa Fé, Entre Rios e Corrientes; todo o território Uruguaio; e por fim, toda a metade sul e a região noroeste do Rio Grande do Sul, uma área que corresponde a cerca de 63% do território Rio-Grandense.
As principais características do bioma são as vastas planícies cobertas por ervas, arbustos e gramíneas – mais de 450 tipos de gramas, como a forquilha e o capim-mimoso, são naturais da Pampa; as coxilhas – pequenos morros – ao longo do relevo; banhados ricos em biodiversidade; areais e zonas de mata próximo aos cursos dos rios. A homogeneidade dos campos é apenas aparente: o bioma possui mais de três mil tipos de plantas, muitas delas ainda não descritas pela ciência. A fauna pampeana também é riquíssima: composta por, no mínimo, 385 aves, como pica-paus, quero-queros, anús-pretos e emas – também chamadas de nhandús, ameaçdos de extinção; e 90 tipos de mamíferos, como o veado-campeiro, tatus, guaraxains, jaguatiricas, entre muitos outros.
Ameaças
A bela paisagem dos campos sulinos, porém, está sob grande ameaça. Segundo estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a pedido do Ministério do Meio Ambiente, atualmente, dos 40% da área de vegetação original restante, menos de 1% está localizado em reservas.
O método de agressão mais discutido é a monocultura da celulose. O plantio de árvores exóticas causa grande impacto na biodiversidade pampeana. O jornalista ambiental Victor Bachetta enumera alguns dos diversos efeitos ambientais causados pela silvicultura. “A compactação e impermeabilização do solo são conseqüências do plantio excessivo do eucalipto. O esgotamento da água também é efeito dessa cultura, já que cada árvore consome 30l de água por dia”. Além disso, a fauna é afetada pelas grandes plantações de árvores exóticas. “Os animais perdem seu habitat, que é o campo aberto com suas peculiaridades. Ainda tem o problema das pragas que surgem com a implantação de elementos não-originais do bioma”, explica o jornalista.
Bachetta palestra em favor da mesma causa que muitos gaúchos, mas sua língua é espanhola. O jornalista especializado em meio ambiente é uruguaio e explica que a llanura pampiana na Banda Oriental também sofre com a monocultura da celulose. “A economia ganadera uruguaia sofre com isso também. A pecuária é afetada, visto que entre as árvores plantadas não nasce o pasto nativo que serve de alimento ao gado. A produção de leite está seriamente afetada. O número de produtores de leite caiu 15% entre os anos de 2005 e 2009”, relata Bachetta. Victor explica que os latifúndios uruguaios estão sendo comprados por empresas estrangeiras em larga escala, para a produção do eucalipto. “A legislação original, montada na década de 80, previa que apenas áreas impróprias para outras culturas e para a pecuária seriam usadas na silvicultura. Porém, os grupos que compram as terras buscam as áreas mais férteis. Outra questão: no primeiro acordo, constava que apenas 50.000 hectares seriam utilizados no plantio e hoje essa área chega a 949.000h”.
A falácia do “reflorestamento”
O coordenador do Departamento de Ecologia da UFRGS, Professor Valério Patta Pillar, alerta para os mitos que são divulgados sobre a plantação de eucaliptos pelo Rio Grande do Sul. “Existe esse pensamento incondicional sobre o benefício do plantio de árvores. Mas acontece que nem sempre traz benefícios – ainda mais quando se trata de plantar uma árvore estranha ao local em questão. No caso do consumo de carbono, por exemplo: as pradarias do Pampa consomem muito mais gás carbônico que o eucalipto, pois o CO2 fica retido sob o solo”, explica o professor. Outra razão muito alegada pelas empresas da indústria da celulose seria o reflorestamento da determinada área. “Existem estudos que comprovam que esta região sempre foi composta por campos. Claro, ocorrem matas em alguns locais. Mas a predominância sempre foi das gramíneas, arbustos, vegetação rasteira composta por pastagens. Não é à toa que a principal atividade econômica desta região sempre foi a criação de gado – o ambiente é propício a isso. Portanto, o “reflorestamento” alegado pelas empresas é uma completa falácia, um atentado à nossa inteligência. Ao criar florestas em um ambiente onde elas nunca existiram, nada é preservado, e sim ocorrem apenas prejuízos para o bioma, a curto e longo prazo” esclarece Pillar.
Impactos sociais e focos de resistência
Outro fator apresentado pelos especialistas diz respeito ao impacto sócio-cultural causado pela mudança da paisagem do Pampa e sua atividade econômica. “Primeiramente, existe uma farsa também na questão dos empregos gerados pela indústria da celulose. As condições de trabalho são praticamente inexistentes. Com a predominância dessas plantações, faltam outras oportunidades de emprego no meio rural. Isto provoca o êxodo, que conseqüentemente gera outros problemas sociais”, explica o jornalista Victor Bachetta. Já o professor da UFRGS Valério Pillar apresenta outro ponto de vista na mesma questão. “O povo gaúcho tem sua origem ligada ao campo aberto, às atividades rurais estabelecidas nesta região. Portanto, quando ele desce do cavalo e cede sua terra para a plantação de maciços (áreas de grande extensão e muito cerradas), ele está abrindo mão de um estilo de vida, ocorre um movimento inverso à sua natureza. A adaptação a este novo modelo é muito difícil. O peão que está acostumado a lidar com o gado dificilmente se manterá em uma atividade como, por exemplo, matar formigas – praga típica do eucalipto. Nunca foi feito um estudo, mas tenho certeza que as regiões onde esta atividade está amplamente consolidada enfrenta uma série de problemas sociais”, afirma Pillar.
Por esse motivo, a identificação com a terra é um dos principais esteios da resistência ao modelo econômico da celulose. “Através da identidade de um povo, pode-se pensar que há como vencer esta batalha”, afirma o jornalista uruguaio. “Há também a questão das propriedades familiares, em que o desligamento com a terra não é simples, há uma tradição histórica em jogo”, diz Pillar. Em outros países, outro foco de resistência é a presença indígena. No Chile, onde as culturas da indústria da celulosa já estão consolidadas, a tribo Mapuche trava uma luta ferrenha para não ceder sua área. “Até conselhos feitos somente em épocas de guerras já foram organizados na tribo”, lembra Bachetta. “Muitos grupos lutam contra esse sistema, mas separados. Creio que, com união, podemos avançar em idéias para salvar nosso meio-ambiente”, diz o jornalista.
Já em relação à economia da região, Pillar sugere uma forma de preservação aliada a uma atividade econômica muito tradicional: pecuária. “A criação de gado, como já foi dito, sempre foi a atividade econômica mais exercida na região da Pampa. A ganaderia foi praticada por aqui durante três séculos, sempre mantendo as características do bioma. É a maneira mais compatível, economicamente, de manter o bioma preservado”, pensa o ecologista.
(Por Gabriel Marquez Gonçalves *, EcoAgência, 25/03/2010)
* Gabriel Marquez Gonçalves é estudante do 6º semestre de jornalismo do Instituto Porto Alegre (IPA). Esta reportagem foi feita sob supervisão da professora de jornalismo Lisete Ghigghi