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áreas inundáveis urbanização desordenada
2010-03-23 | Tatianaf

As vidas de Nicolas Sarkozy e Verónica Monges não têm qualquer ligação, mas nas últimas semanas enfrentaram um inimigo comum. O presidente francês visitou La Rochelle em 1º de março passado, depois da tempestade Xynthia, que custou a vida de 50 pessoas enquanto dormiam tranquilamente em suas casas. “Não se pode transigir com a segurança. Devemos refletir sobre os projetos urbanísticos para que essa catástrofe não volte a acontecer”, disse Sarkozy. Monges vive no assentamento de casas ilegais na margem do rio Guadarrama, no município madrilenho de Móstoles.

“Nos dias em que chove muito isto inunda e vamos para a casa de um parente algumas ruas acima. Há duas semanas tivemos de tirar água com balde da sala de uma vizinha”, conta da porta enquanto tenta que sua filha não perturbe o menino menor. “Se temos medo de que um dia aconteça alguma coisa? É claro que sim”, responde sem hesitar. Reportagem de Luis Doncel, El País.

A catástrofe de La Rochelle se originou de um coquetel formado por ventos de mais de 150 quilômetros por hora, subida da maré e chuvas torrenciais. Os problemas de Monges, porém, se devem à possível inundação do rio que vê todas as manhãs de sua casa. Mas tanto em um caso como no outro – assim como nas chuvas da ilha da Madeira, que no final de fevereiro deixaram cerca de 40 mortos, ou as cheias do rio Guadalquivir, sem vítimas mortais mas com prejuízos materiais vultosos – a construção de residências em áreas perigosas é o grande problema. A proliferação de um urbanismo que ignorou os cursos da água provocam um debate que confronta a segurança dos cidadãos com o direito dessas pessoas de continuar vivendo em suas próprias casas. Nenhuma solução – desapropriações, obras de engenharia… – deixará todo mundo satisfeito.

O fenômeno se estendeu nestes anos em que o tijolo se transformou na ferramenta mais fácil e mais rápida das prefeituras para fazer caixa. Não há números oficiais, mas os dos ecologistas assustam. “Estimamos em 40 mil as construções em domínio público hidráulico, a grande maioria residências, mas também campings, ginásios esportivos, residências de idosos, colégios, restaurantes…”, afirma Santiago Martín Barajas, autor de um relatório da Ecologistas em Ação. Os responsáveis políticos, porém, preferem atenuar o caso. “Acho o número exagerado, um tanto alarmista”, responde Jesús Yagüe, subdiretor de Domínio Público Hidráulico do Ministério do Meio Ambiente. “Estamos realizando a cartografia das áreas inundáveis, que estará plenamente operacional em 2012″, acrescenta.

Depois de anos olhando para o outro lado, a radiografia do problema deu um salto de gigante em 2007, com a diretriz da Comissão Europeia que deu o prazo de 2013 para que os Estados localizem em mapas suas áreas de risco de inundação. “A reforma da Lei do Solo de 1998 já estabeleceu que era preciso declarar como não urbanizável o solo que representa riscos, mas esse artigo nunca foi cumprido”, lembra Jorge Olcina, catedrático de geografia da Universidade de Alicante. “Como não havia mapas de risco, se construía. Durante o boom imobiliário ninguém queria olhar para um problema no qual se joga com vidas humanas”, conclui Olcina, que estima em 300 as mortes causadas por inundações na Espanha nos últimos 15 anos.

Como as dos 87 veranistas que morreram em 7 de agosto de 1996 em Biescas (Huesca – província no nordeste da Espanha). Foram 87 corpos arrastados por uma enxurrada que arrasou um camping construído no curso de uma torrente, perto de um barranco. Os relatórios técnicos que desaconselhavam a localização do estabelecimento nesse lugar de nada serviram.

Depois de um acontecimento que deixou em choque todo o país – e que obrigou as administrações a pagar 11,2 milhões de euros por não terem evitado um desastre previsível, o Senado criou uma comissão para tirar conclusões da tragédia. “Deram recomendações de enorme interesse, mas que não foram postas em prática. Tiveram de se passar mais de dez anos para que voltássemos a estudar essas conclusões”, acrescenta o catedrático da Universidade de Alicante.

É provável que catástrofes como a de Biescas não tivessem acontecido antes porque ninguém havia pensado em levantar um camping no curso de uma torrente, perto de um barranco. “Perdemos a memória do território. Antes se escolhiam os lugares para se assentar com um certo conhecimento do território. A moderna promoção de moradias esqueceu esses ensinamentos, e por isso se torna imprescindível um estudo rigoroso do solo”, afirma o Prêmio Nacional de Urbanismo José María Ezquiaga.

Os estragos da água também não são desprezíveis do ponto de vista econômico. Trata-se do risco natural que mais danos causa na Espanha por ano: 0,1% do Produto Interno Bruto, isto é, cerca de 1 bilhão de euros. E podem chegar a mais. Porque na medida em que a mudança climática se fizer mais presente será necessário reavaliar os riscos que representa. “Por exemplo, aumentarão os problemas da inundação em áreas costeiras, até agora muito pouco importantes na Espanha”, prevê Ezquiaga

O mapa que o ministério prepara em colaboração com as comunidades autônomas, do qual já desenhou mais de 60 mil quilômetros, permitirá implementar uma política preventiva para evitar licenças de obras em áreas de risco. Além do mapa, o governo investiu em quatro anos mais de 300 milhões em conservação e limpeza de leitos de rios e implementou o Sistema Automático de Informação Hidrológica, para prevenir as enxurradas. As inundações da costa mediterrânea, onde são mais frequentes, não costumam causar muitos danos, apesar de ser uma das áreas mais vulneráveis por sua alta densidade populacional. “As grandes inundações, normalmente causadas por chuvas contínuas, são menos comuns e costumam se localizar na Andaluzia ou na Extremadura”, explica a professora de meteorologia Carmen Llasat.

Mas, uma vez detectadas as áreas perigosas, o que fazer com as pessoas que vivem nessas dezenas de milhares de casas já construídas? “É a pergunta do milhão”, reconhece o alto funcionário do ministério. “Teremos de ver que medidas adotar. Os proprietários deverão aumentar os seguros contra inundações. E é necessário abrir um debate público sobre a desapropriação”, acrescenta Yagüe. A França está na vanguarda nesse sentido: desenhou um mapa com três níveis de risco e reserva a desapropriação só para as áreas mais perigosas.

“Não cabem mais que duas alternativas. Ou se iniciam obras hidráulicas muito caras, que, se forem feitas com verbas públicas, implicarão transferências de renda para os que em muitos casos construíram ilegalmente. Ou se transferem essas urbanizações. Apesar de ser uma medida muito impopular e que coloca muitas interrogações, creio que será preciso avançar nesse caminho”, indica o urbanista José María Ezquiaga. Como primeiro passo, o governo começou nos últimos quatro anos a recuperar terreno para dar mais espaço ao rio. O alto custo dessas desapropriações, mais enfocados na melhora ambiental do que na segurança, provoca a grande lentidão de sua execução.

Seja qual for a decisão adotada, será um caminho lento, caro e que não cobrirá todos os lados. Por isso o professor de geologia da Universidade de Barcelona Joan Manuel Vilaplana insiste na educação. “As canalizações são necessárias mas não suficientes. Dão uma falsa sensação de segurança. Creio no exemplo francês, que envolve projetos de prevenção para sensibilizar a população. É preciso ensinar as pessoas a conviver com o risco e não falar disso só quando há uma tragédia. As administrações públicas esconderam a cabeça o resto do tempo”, diz Vilaplana.

Mas nem todos se escondem. A prefeitura de Móstoles pede há anos à Confederação Hidrográfica do Tejo e ao governo central a demolição de duas centenas de residências no leito do rio Guadarrama. “Antes que haja uma tragédia humana como a de Biescas”, dizia o prefeito Esteban Parro, há dois anos e meio.

Esse povoado nasceu nos anos 1960. As moradias que no início eram utilizadas para descanso de fim de semana se transformaram em residências habituais. Esse conglomerado de casas à margem da legalidade recebeu mais tarde população cigana e imigrante, principalmente marroquina. Alguns chegaram a tempo para ver com seus próprios olhos a inundação de 1989 e a menos grave de 1995. “Não é para tanto. Aqui não há mais nenhum perigo”, diz Rebeca, atrás do balcão de um dos dois bares do lugar, que não vê com bons olhos a presença de jornalistas. “Depois vocês dizem que a coisa está terrível e não é verdade”, protesta. Nas últimas semanas, depois do fevereiro mais chuvoso dos últimos 30 anos, os responsáveis pelo município de Móstoles informaram a todos que quiseram escutar sua preocupação com a possibilidade de que ocorresse uma tragédia no lugar. Finalmente, nada aconteceu. Mas e na próxima vez?

(El País, UOL Notícias, EcoDebate, 22/03/2010)


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