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glifosato política ambiental argentina
2010-03-17 | Tatianaf

A Justiça de Santa Fe, na Argentina, pronunciou uma sentença inédita, com possíveis impactos no modelo agropecuário da Argentina, ao manter firme uma sentença que proíbe as fumigações com glifosato nas proximidades de zonas urbanas da cidade de San Jorge, oeste da província.

A medida foi decidida pela Câmara de Apelações Civil e Comercial (Sala II) de Santa Fe, que deu outro passo inédito: ordenou que o governo de Santa Fe e a Universidade Nacional do Litoral (UNL) demonstrem, no curso de seis meses, que os agroquímicos não são prejudiciais à saúde.

Dessa maneira, pela primeira vez, inverteu-se a carga da prova: era uma regra que os moradores e os agricultores intoxicados tinham que demonstrar as afecções na saúde, mas agora serão os impulsores do modelo de agronegócio que terão que demonstram a inocuidade dos químicos.

Os juízes também marcaram jurisprudência ao invocar o princípio precautório: diante da possibilidade de prejuízo ambiental irremediável, é necessário tomar medidas protetoras. Os iniciadores da causa, moradores que sofreram transtornos na saúde por causa das fumigações, já solicitaram que a medida se estenda a toda a província. O glifosato é o pilar fundamental do monocultivo da soja.

San Jorge é uma cidade de 25 mil habitantes, localizada a 144 kilómetros da capital da província. É uma zona de soja por excelência. Durante os últimos 15 anos, ela cresceu ao abrigo do monocultivo, a zona urbana se estendeu e também os campos semeados. O bairro Urquiza está na periferia do município, é humilde, com casas ainda inacabadas e foi durante uma década limítrofe a campos de soja. Da casa de Viviana Peralta, pode-se ver o campo e também os aviões fumigadores. Ela foi uma das impulsoras da denúncia inicial, depois que sua filha Ailén, de apenas dois anos, sofreu falta de ar, intoxicação e um desmaio depois de uma fumigação.

Em março de 2009, o juiz Tristán Martínez – do Juizado Civil, Comercial e Trabalhista Nº 11 – deu lugar a um amparo e ordenou a suspensão imediata das fumigações nas adjacências da zona urbana da cidade, até que o Conselho Deliberativo e o município fizeram eco da lei 11.273 (sancionada em 1995) e determinaram quais zonas podem ser pulverizadas com agroquímicos.

Os produtores, da prefeitura e do governo da província, mediante o Ministério da Produção, apelaram a medida. Os três juízes da Câmara Civil e Comercial de Santa Fe (Armando Drago, Enrique Müller e María Cristina de Césaris de Dos Santos Freire) confirmaram a sentença de primeira instância: proibição total de fumigar com agroquímicos a menos de 800 metros de moradias familiares (se o método utilizado é terrestre) e a 1.500 metros (se a aspersão é mediante avião).

A sentença inédita, unânime, foi proferia em dezembro passado, mas só foi conhecida agora. “O chamado a decidir (pela proibição) se desenvolve em um contexto difícil, onde estão em disputa controvérsias científicas, interesses econômicos, pressões e contrapressões de ordem política e empresarial, riscos conhecidos socialmente (…) que têm a propriedade de transformar o apolítico em político, desinformação interessada, descoordenação na gestão pública, insolidariedade com os possíveis afetados”, adverte a Justiça.

Nas centenas de denúncias por contaminação e intoxicação, os afetados se confrontam na Justiça com um pedido de difícil cumprimento: são os próprios prejudicados (indígenas, agricultores e humildes habitantes periurbanos) que devem provar cientificamente que os agroquímicos são prejudiciais.

A apelação do governo de Santa Fe se dirigiu a esse ponto frágil. A província argumentou que a denúncia original (a ação de amparo) era inadequada porque, antes de qualquer proibição, devia ocorrer um debate amplo com demonstrações científicas que certificassem os prejuízos sobre a saúde e o meio ambiente.

Mas a Justiça rejeitou esse caminho. “Permito-me indicar enfaticamente que a questão não requer de maior amplitude enquanto a ‘debates e provas’. Discute-se sobre atos que atentam contra o meio ambiente, repercutindo de maneira direta na saúde dos moradores da cidade de San Jorge, o que importa é que existe um fator de urgência que (deve) ser atendido”, sentenciou a Câmara de Apelações.

E, pela primeira vez em casos de agroquímicos, inverteu a carga da prova. Não solicitou que as famílias afetadas provassem os males dos agroquímicos. Ordenou que o governo provincial, mediante o Ministério da Produção, realize estudos junto à Universidade Nacional do Litoral (UNL).

No término de seis meses, ele deverá provar que os agroquímicos não afetam a saúde e o meio ambiente. O juiz de primeira instância Tristán Martínez recebeu novamente a causa apenas na semana passada. O mais rápido possível deverá notificar a província e a UNL. Quando se cumprir o prazo de seis meses, o juiz Martínez deverá decidir – estudo em mãos – se reverte a medida, a mantém ou a aprofunda.

O outro aspecto inédito da sentença é o uso do princípio precautório no que se refere a agroquímicos. A Lei Nacional do Ambiente define o princípio precautório em seu artigo 4: “Quando haja perigo de dano grave ou irreversível, a ausência de informação ou certeza científicas não deverá ser utilizada como razão para postergar a adoção de medidas eficazes, em função dos custos, para impedir a degradação do meio ambiente”.

A Câmara de Apelações de Santa Fe utiliza o artigo como uma das bases de sua sentença, enumera sete casos em que ele foi implementado, destaca que sua utilização é justificada quando haja “falta de certeza científica e ameaça de dano ao meio ambiente ou à saúde humana”, e toma como antecedente o que foi realizado pela Corte Suprema de Justiça da Nação, máximo tribunal da Argentina, no freio aos desmontes em Salta (dezembro de 2008).

A Justiça de Santa Fe afirmou que a limitação no uso do glifosato para a cidade de San Jorge se fundamenta na “incerteza científica acerca dos riscos ambientais, a incidência da alteração séria do meio ambiente e a irreversibilidade que podem provocar tais danos”, e explica que sua medida pode ser entendida para “evitar um dano futuro, mas relativamente certo e mensurável”.

A sentença também entra em cheio na prática judicial comum: pede que fiscais e juízes “repensem que os avanços tecnológicos não são poderes que se legitimam a si mesmos”.

Na sentença, os três juízes advertem que intervêm interesses setoriais que não buscam identificar os riscos reais, mas sim defender seus próprios papéis na cadeia do agronegócio. Assinala que os fumigadores defendem que as contaminações se devem ao mau uso (um argumento recorrente das câmaras empresariais), adverte que as companhias produtores de agroquímicos “defendem a atoxicidade com estudos encomendados por elas mesmas”, o Estado “apregoa sua preocupação pelo meio ambiente, mas esquece que a melhor maneira de se comprometer com o assunto é efetuando os devidos controles” e evidencia a falta de solidariedade entre os fazendeiros: “Eles defendem que se os produtos que aplicam se encontram autorizados, ninguém pode encaminhar nenhuma ação antijurídica, razão pela qual não se pode impedir que eles trabalhem e produzam”.

“O que fica claro é que as posições divergentes, antes de dissipar as dúvidas de utilização dos agroquímicos, principalmente em zonas urbanas, aumentam-nas, porque todos conhecem os potenciais riscos de sua utilização (…), a preeminência não é dos interesses setoriais de ninguém, mas sim, pelo contrário, a preeminência está do lado da saúde pública e do meio ambiente”, sentenciou a Justiça de Santa Fe e afirmou: “Diante da existência da dúvida relevante, a aplicação do princípio precautório se torna inevitável, porque só a existência de crianças afetadas (…) assim o determina”.

O Centro de Proteção à Natureza (Cepronat), organização impulsora da denúncia inicial, já anunciou que irá solicitar que a limitação do uso de glifosato seja ampliada à toda a província. “A Justiça protegeu os habitantes de San Jorge até que se demonstre a suposta inocuidade. Pedimos que o resto dos santafesinos sejam protegidos. Se isso não ocorrer, haverá cidadãos de primeira protegidos do uso de agroquímicos, e o resto da província estará exposto a químicos que são suspeitos de afetar a saúde e o meio ambiente”.

O Cepronat, que integra a campanha nacional “Parem de fumigar” – na qual confluem dezenas de organizações sociais e povos fumigados – instou que o governador Hermes Binner escutasse a sentença judicial e estendesse a limitação para as fumigações. “Acima de tudo, o governador é médico, entende que a saúde deve anteceder as atividades produtivas”, afirmou Carlos Manessi, do Cepronat.

O jornal Página/12 tentou dialogar com o governador, mas seu pota-voz explicou que ele não irá falar do tema e encaminhou as perguntas ao Ministério da Produção, que informou que os funcionários não farão declarações públicas até serem notificados pela Justiça.

Binner formou-se em Medicina em 1970, na Universidade de Rosario. Entre outras especializações, segundo seu currículo, focalizou sua profissão em “saúde pública”, que é um conceito social e político que (segundo a própria definição médica) está destinado a “melhorar a saúde e melhorar a qualidade de vida das populações mediante a promoção da saúde, da prevenção das doenças e da harmonia com o meio ambiente”.

Glifosato: uma sentença inovadora

Alexis Cabral, de 8 anos, padecia de alergias constantes e era dependente de um inalador para poder se recompor da falta de ar. Vivia na frente do campo de soja denunciado. Há um ano, coincidentemente com o fim das fumigações, Alexis não padece de nenhum sintoma e deixou o inalador.

Não existem estudos científicos que demonstrem a relação direta, mas os vizinhos do bairro Urquiza, de San Jorge, não acreditam que seja uma casualidade. A recente sentença da Justiça de Santa Fe, na Argentina, também é inovadora nesse sentido: revaloriza os testemunhos dos afetados – muitas vezes minimizados pelos juízes –, ressalta a importância dos médicos dos municípios (testemunhas cotidianas na atenção a intoxicados) e cita trabalhos científicos que alertam sobre os efeitos do glifosato.

A reportagem é de Darío Aranda, publicada no jornal Página/12, 15-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

“Em casos controversos cientificamente, torna-se muito relevante considerar as ‘histórias de vida’, as ‘experiências’, os ’saberes e conhecimentos’ daqueles que vivem cotidianamente expostos ao risco que se trate, neste caso os agroquímicos. É necessário revalorizar o ’sentido comum’, já que a ciência não pode responder a todos os interrogantes”, exige a Câmara de Apelações Civil e Comercial (Sala II).

A sentença ressalta também a importância dos médicos rurais: “(São) um grupo de pessoas que não integram o chamado ’sistema científico oficial’ e têm efetuado estudos relevantes há muitos anos”.

Quanto aos membros da comunidade científica que estudaram os efeitos dos agroquímicos e alertaram sobre o seu uso, a sentença assinala as pesquisas de Argelia Lenardón (UNL-Conicet), que estudou a existência de agroquímicos organoclorados no leite materno; de Amalia Dellamea (UBA), que confirmou a presença de herbicidas nos produtos lácteos; de Alejandro Oliva (Hospital Italiano de Rosario), que estudou os impactos nas funções reprodutivas; de Jorge Kaczewer (UBA), que recompilou trabalhos sobre o tema; e de Andrés Carrasco (UBA-Conicet), que detectou no ano passado deformações em embriões anfíbios, alertou a opinião pública e foi duramente atacado pelas câmaras empresariais do setor.

Os juízes santafesinos recordam como antecedente o decreto presidencial que criou a Comissão Nacional de Investigações sobre Agroquímicos, na qual intervieram os ministérios de Ciência, Saúde, Agricultura, o INTA e o Conicet.

“O relatório recebeu múltiplas críticas por parte de especialistas (…). As críticas ao informe indicam que ele utiliza bibliografia distorcida, recorta a problemática e equipara estudos da Monsanto com trabalhos de cientistas independentes”, afirmou a sentença recente.

A Justiça indicou que os principais defensores da inocuidade dos agroquímicos são as câmaras empresariais e a Associação Produtora de Semeadura Direta. Reconhece que a OMS e a FAO classificam o glifosato dentro de uma categoria de baixo risco, mas cita a bióloga da UBA Lilian Joensen: “As classificações da OMS e da FAO não estão baseadas em estudos próprios ou de grupos independentes, mas tratam-se de revisões de estudos feitos pelas próprias empresas”.

Glifosato: um herbicida questionado
Cerca de 56% da terra cultivada da Argentina está destinada à soja. Segundo dados do Ministério da Agricultura, na safra 2008/2009 o monocultivo abrangeu 17,5 milhões de hectares sobre 31 milhões que foram semeados em todo o país. Na safra 2010, a soja já abrange 19 milhões de hectares. Um dos pilares do modelo de agronegócio é o agroquímico chamado glifosato, cuja marca comercial mais famosa é o Roundup, da empresa Monsanto, líder mundial do setor.

O glifosato é o agrotóxico mais questionado da Argentina, embora não seja o único. O químico é aspergido sobre a terra, e a única coisa que cresce é soja transgênica, modificada em laboratório. O resto das plantas absorve o veneno e morrem. As grandes empresas do setor reconhecem a utilização, no mínimo, de dez litros de glifosato por hectare. No último ano, os campos argentinos foram fumigados com 175 milhões de litros do herbicida, que é o alvo das denúncias por contaminação ambiental e prejuízo sobre a saúde.

A soja transgênica e o uso de glifosato foram aprovados em 1996, quando Felipe Solá era secretário da Agricultura de Carlos Menem. O expediente dessa aprovação foi conhecido apenas no ano passado, quando Horacio Verbitsky confirmou ao jornal Página/12 que não houve estudos oficiais para determinar a toxicidade do agroquímico.

(Por Darío Aranda, Página/12, tradução de Moisés Sbardelotto, Ecodebate, 17/03/2010)


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