A administração da questão indígena brasileira está fugindo dos limites da racionalidade e da boa intenção! Agora é o Senado Federal que se aproxima do ponto em que ousa legislar diretamente sobre os interesses dos povos indígenas sem consultá-los e propositadamente à sua revelia.
Voltamos à ditadura militar??
O presente projeto, da iniciativa da bancada ruralista, declara que pode-se fazer uma hidrovia que atinja os rios Araguaia e das Mortes, ao lado dos quais estão terras indígenas dos Xavante, Karajá, Tapirapé e outros povos indígenas . Essa licença é dada por si mesma, independentemente de estudos e viabilidade econômica, social, étnica e política, e intenciona facilitar a vida das empresas de tal modo que não vai ser preciso consultar os índios sobre impactos ambientais, sociais e econômicos que incidam diretamente sobre suas terras e sobre suas sociedades.
O projeto estabelece o instituto do decurso de prazo, segundo o qual, se em tal período, digamos 90 dias, os interessados não apresentarem suas razões, seja contrárias, sejam favoráveis, para projetos como a construção de hidrovias no rio das Mortes, o caso está automaticamente aceito e sacramentado. Bem, para que contestar se automaticamente o projeto já foi aprovado?!
Realmente, a coisa fugiu dos limites.
Porém, há de se perguntar: de onde vem o exemplo para tal despropósito?
A atual direção da Funai também não se deu ao trabalho de consultar os povos indígenas, nem formal nem informalmente, sobre a reestruturação da própria Funai!! E sobre dezenas de outras ações que só vêm prejudicando os povos indígenas do Brasil.
Por que então, o Senado Federal iria fazê-lo?
Eis o exemplo negativo que sai da própria Funai e se esparrama perigosamente pelas instituições do país. Com que moral a atual gestão da Funai vai contestar a intenção da bancada ruralista do Senado?
Projeto do Senado autoriza obra de hidrovia em áreas indígenas
A bancada ruralista do Senado aprovou um projeto de decreto legislativo para autorizar obras da hidrovia Araguaia-Tocantins em áreas indígenas homologadas e demarcadas pela União. O texto da Comissão de Agricultura do Senado também fixa um prazo máximo de 90 dias para a análise dos estudos antropológicos e de relatórios de impactos ambientais em órgãos federais.
A criação do chamado “decurso de prazo” deve forçar uma aprovação mais rápida do licenciamento ambiental pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) e também acelerar o sinal verde da Fundação Nacional do Índio (Funai). Se não houver a análise desses estudos em até 90 dias, o projeto da hidrovia de 3 mil quilômetros passa a ser considerado aprovado.
“Isso é para forçar os órgãos a não dormir com o projeto. Eles têm que dizer sim ou não”, justifica a relatora do texto, senadora Marisa Serrano (PSDB-MS). “Mas isso é apenas um marco de tempo. As comunidades devem ser ouvidas antes.” A obra deve ser incluída na segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento, o chamado PAC 2.
Em tramitação há seis anos, o projeto nº 232 regulamenta o uso de trechos dos rios das Mortes, Araguaia e Tocantins em regiões de Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Pará. “Precisamos acelerar a concessão dessas licenças. Precisamos de estudos técnicos de viabilidade e de relatórios ambientais”, diz o senador Gilberto Goëllner (DEM-MT), autor das emendas de limite temporal para as análises de Ibama e Funai.
As ONGs ambientalistas apontam o projeto como uma nova tentativa dos parlamentares ruralistas de pressionar e intimidar os técnicos do Ibama. “É uma pressão política para apressar o licenciamento ambiental no Ibama”, diz a secretária-executiva da ONG Instituto Socioambiental (ISA), Adriana Ramos.
Em maio de 2009, a Câmara Federal aprovou, em uma medida provisória, o “decurso de prazo” no licenciamento ambiental das obras de recuperação de rodovias. “É outra “pegadinha” reincidente. A tática visa acabar com o rito do licenciamento. Antes, a obra. E só depois o projeto da obra”, aponta a ambientalista. O problema da hidrovia Araguaia-Tocantins é, segundo ela, “de origem”, já que seria necessário autorização para uma “dragagem permanente” dos leitos dos rios devido às suas características geológicas particulares.
A obra da hidrovia é considerada fundamental pelos ruralistas para o desenvolvimento do setor agropecuário do Centro-Oeste. A área de influência da Araguaia-Tocantins teria, segundo relatório do Ministério dos Transportes, potencial de produção estimado em 35 milhões de toneladas de grãos até 2020.
O rio Tocantins já é navegável em 250 km de extensão, da barragem de Tucuruí (PA) até a foz do rio Amazonas (AP). Mas a hidrovia precisará de grandes obras de alto impacto ambiental, como o derrocamento de corredeiras e a construção de canais auxiliares, terminais de transbordo e de eclusas em usinas hidrelétricas. Boa parte disso deve ocorrer em áreas de reservas indígenas.
No rio das Mortes, considerado o elo mas frágil da hidrovia, cerca de 550 quilômetros seriam navegáveis entre São Félix do Araguaia e Nova Xavantina (MT). No Araguaia, outros 1.230 quilômetros entre Aruanã (GO) e Xambioá (TO) comporiam o chamado Corredor Multimodal Centro-Norte, conectado às ferrovias Carajás e Norte-Sul, além da rodovia BR-153. O destino final das cargas seria o porto de Itaqui (MA). “Teríamos uma enorme economia de recursos, tempo e vidas com essa hidrovia”, defende Goëllner, um grande produtor de grãos de Rondonópolis (MT).
Além das ONGs ambientalistas, a hidrovia enfrenta resistência de algumas etnias indígenas. A Constituição Federal submete ao Congresso Nacional a autorização para exploração de recursos hídricos nas áreas homologadas e demarcadas pela Funai. Os índios xavantes já pediram, na Justiça, a suspensão das obras da hidrovia nas terras à beira do rio das Mortes.
(Por Mauro Zanatta, Valor Econômico, Blog do Mércio, 09/03/2010)