Os desastres provocados pelo excesso de chuvas em várias regiões do país são o tema de maior destaque na mídia nesse começo de ano. A imprensa explora o tom dramático da tragédia, mas felizmente não deixou passar batido o discurso demagógico do governador do Rio de Janeiro, mostrando que sua indignação contradiz o decreto assinado por ele há seis meses, autorizando construções em áreas de proteção ambiental, e um estudo que alertava sobre a situação de risco, conforme anuncia OECO.
A exploração imobiliária com a conivência do poder público é algo bastante comum nas áreas costeiras fluminense e paulista. Aliás, a permissividade do poder público em relação a empreiteiras é bastante comum em quase todo lugar, o que explica em parte o caos que acomete grandes cidades quando as chuvas caem em demasia.
Mas estou desviando do assunto que queria tratar nesse post. Se por um lado a imprensa cumpre um papel importante ao relacionar políticas públicas nocivas a desastres socioambientais, por outro esse impulso ainda vem como reação a tragédias e raramente acontece por antecipação dos jornalistas. No caso das chuvas do começo do ano, há pouca relação nas matérias da imprensa entre esse tipo de evento e a necessidade de políticas e ações de adaptação às mudanças climáticas. As chuvas intensas são apontadas como um dos principais efeitos que o Brasil deverá experienciar numa situaçã de desequilíbrio climático.
Mas há um outro exemplo que me chama mais atenção e também foi noticiado com destaque essa semana: pelo terceiro mês consecutivo, a indústria automobilística bateu recorde de vendas no Brasil. A notícia vem em geral envolta num tom positivo, tendo como único foco o desempenho da economia. Entretanto, menos de um mês após o fracasso da COP-15 ter sido alardeado pela mídia, não se lê sobre o impacto de emissões dos novos carros que passam a circular, ou sobre o impacto para a saúde e o trânsito nas cidades e nem mesmo sobre a falta de políticas que condicionem a produção e o consumo do transporte individual a iniciativas de descarbonização da economia e de sustentabilidade para o meio urbano.
Seguindo o mesmo estilo de cobertura dos desastres naturais, só ouviremos falar dos impactos negativos da indústria automobilística quando a cidade de São Paulo bater um novo recorde de congestionamento ou de internações por problemas respiratórios ou ainda acusar um aumento de emissões de carbono. Quando cientistas e ambientalistas dizem que é urgente novas formas de produção e consumo, isso significa que a socieade como um todo deve rever seu comportamento. E isso inclui a imprensa. Para cumprir o papel de guardiã da cidadania que muitas vezes se reserva, a mídia deve ter a ousadia de se antecipar aos fatos, deve inovar com pautas cotidianas pensadas a partir de uma perspectiva mais crítica e ter a coragem de colocar o dedo em feridas – mesmo que elas estejam associadas a patrocinadores de peso.
(Por Ricardo Barretto, GVce, OngCea, 05/03/2010)