Investidores se organizam para formar consórcios e dividir Belo Monte depois da concessão da licença prévia e da “aprovação” do leilão pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Os chamados desenvolvedores dos Estudos de Viabilidade Técnica e Econômica (EVTE) e dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) são as três maiores empreiteiras do Brasil – Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez – e a estatal brasileira Eletrobrás, que há 22 anos vem insistindo na destruição do rio Xingu.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aprovou o EVTE apresentado e, cumprindo a praxe, em setembro de 2009, mandou para o TCU analisar. Os responsáveis pela elaboração dos estudos de viabilidade técnica e econômica estão agora se articulando para formar consórcios entre si e com outras empresas e fundos de pensão, inclusive. Para concorrer ao leilão essas empresas terão que descaracterizar a vantagem da posse de informação privilegiada, um dos temas questionados no relatório do TCU em função do artigo 9° da lei 8666 de licitações.
Desde fevereiro de 2009, Belo Monte não sai das pautas da mídia brasileira e internacional. A análise do EIA/RIMA pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) entrou em contagem regressiva e a emissão da Licença Prévia (LP) passou a ser o momento zero. Não custa lembrar que Lula recebeu representantes dos movimentos sociais que didaticamente apresentaram os números escamoteados dos estudos ambientais analisados. O presidente disse que não “permitiria que enfiassem Belo Monte goela abaixo da sociedade”. Mas permitiu.
Em setembro de 2009, o TCU recebeu da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) o relatório de otimização – melhor arranjo, com o melhor aproveitamento e menor custo - do projeto de Belo Monte para analisar e aprovou, em 3 de fevereiro de 2010, o custo de 16 bilhões de reais e o preço teto de R$ 68 o MWh para o leilão. Mas o teor do relatório do TCU não foi nem divulgado e nem explorado pela imprensa. Jornais noticiaram a aprovação do leilão, mas não mencionaram as irregularidades apontadas e as recomendações dos técnicos do TCU.
Notícias dão conta de que os candidatos ao leilão estão reclamando do valor do investimento aprovado, pois construir Belo Monte, segundo eles, requer entre 20 e 35 bilhões. No dia 10 de fevereiro o Ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, deu declaração que fez coro com os interessados, ignorando o TCU, de que os investimentos seriam da ordem de 30 bilhões. Por enquanto são de reais, mas no meio do caminho costumam mudar para dólares, sem que percebamos. Também é preciso considerar que algumas grandes empresas chamadas autoprodutoras, aquelas cujo insumo básico é a energia – indústria de aço, alumínio, cimento – devem integrar os consórcios. Vale, Alcoa e Votorantin estão negociando.
O leilão
Para entender melhor: o governo compra no leilão 70% da energia que seria produzida por Belo Monte, segundo os estudos técnicos, pelo preço que tiver o maior deságio em relação ao preço-teto aprovado pelo TCU, de R$ 68. Esse preço-teto é baseado nos estudos de viabilidade técnica e econômica - custos de arranjos de engenharia, equipamentos, materiais, socioambientais, capital, juros, desapropriações - apresentados pelos desenvolvedores (antes chamados de empreendedores) do projeto básico e que, no caso de Belo Monte, são liderados pela Eletrobrás.
O leilão só pode ser realizado depois de aprovado pelo TCU, que por sua vez só pode aprovar depois que o Ibama emite a LP. Então, para que a Aneel publique o edital do leilão, é preciso que o TCU, no chamado primeiro estágio, analise preliminarmente todos os documentos que incluem os estudos econômico-financeiros, os estudos de impacto e licenciamento ambiental – inclusive a licença prévia e suas condicionantes - e os aspectos relacionados a projeto básico e custos das obras.
Depois de analisados os documentos pelas três áreas técnicas do TCU – Sefid, Secob e Secex – é emitido um relatório que deve ser apreciado pela seção plenária e votado pelos ministros com a presença de auditores. Nesse relatório são apresentadas determinações e recomendações para o Leilão e Outorga de Concessão para geração de energia e elétrica, no caso Belo Monte, aos interessados Aneel, EPE e MME.
A EPE sugere nessa fase, um preço-teto para o leilão, obtido através uma metodologia de composição de custos que é também analisada pelo TCU em seu relatório. Para Belo Monte, o preço-teto foi calculado em R$ 68.
Um grupo coordenado pela Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, para tratar da licitação de Belo Monte, estabeleceu uma nova regra para definir os percentuais de energia que serão comercializados no leilão: 70% para o ambiente regulado; 20% para os autoprodutores integrantes do consórcio vencedor, sob a condição de investirem no projeto; 10% para o chamado ambiente livre - comercializados fora do leilão a preços de mercado.
As irregularidades apontadas no relatório
Esse intróito sobre os procedimentos necessários ao dimensionamento dos custos de implantação de Belo Monte e conseqüente preço teto do MWh do leilão, se faz necessário para entender algumas irregularidades e surpresas apontadas pelos técnicos do TCU e que não foram divulgadas pela imprensa.
Segundo o relatório, antes da nova regra determinada por Dilma, o preço teto teria ficado em R$ 59/MWh, bem abaixo dos R$ 68 sugeridos pela EPE. Outro ponto importante levantado foi quanto à incerteza do dimensionamento da energia firme a ser produzida, pois a EPE indicou 4570,2 MW médios, a Aneel 4477,5 MW médios e, antes da emissão da Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH) pela Agência Nacional de Águas (ANA), trabalhava-se com 4607,7 MW médios.
A energia firme prevista para Belo Monte – mais ou menos 4500 MW - é a média obtida levando-se em consideração os cálculos nos períodos de cheia e de seca.
Aqui é preciso aproveitar a oportunidade para desmistificar o discurso de Brasil Grande do governo quanto a Belo Monte estar planejada para produzir 11200 MW. Na verdade esse número corresponde ao pico máximo de carga a ser produzida em um dado momento de “máquinas a pleno vapor”, fazendo uma analogia.
No relatório de 48 páginas a Secob entendeu, por exemplo, que os levantamentos topográficos apresentados no EVTE são vagos, que as recomendações mínimas de exigência de precisão não estavam sendo observadas. Chamam a atenção para o fato de que o estudo do reservatório do arranjo de Belo Monte não estivesse acompanhado de imagens na escala recomendada pelo Manual de construção de baragens; ou sobre as grandes discrepâncias nos volumes calculados pelos desenvolvedores, em relação àqueles definidos pela EPE em seu estudo de otimização, onde se constata grande variação dos cálculos de escavações, inclusive.
A Secob concluiu, também, que os estudos cartográficos têm elevados níveis de incerteza, incompatíveis com o porte da obra; que são precárias a qualidade dos levantamentos dos estudos hidrológicos e da metodologia adotada; que a forma de estimativa da contribuição do rio Bacajás é insuficiente para o fim a que se propõe; e demonstrou a necessidade de estudos através de modelo reduzido para melhor entendimento do comportamento do fluxo hidráulico da UHE Belo Monte, o que, segundo ela, não foi feito.
Essas são, entre tantas, algumas das irregularidades apontadas no relatório do TCU. Tem mais ainda, como o fato de os estudos de viabilidade não estarem em condições de representar, com boa precisão, o conjunto de obras da UHE Belo Monte ou que a qualidade das informações apresentadas ao Tribunal não permitiu a aferição dos quantitativos de serviços e, conseqüentemente, os preços finais das obras civis principais. Nesse caso poderiam estar incorretos os cálculos dos custos e, em decorrência, o preço teto do MWh.
A Secretaria ainda entende que “uma obra de tal complexidade e magnitude (envolvendo grande volume de recursos - cerca de 16 bilhões de reais) não deveria ser resumida a apenas 12 itens de serviços (Obras Civis), conforme apresentado pelo desenvolvedor dos Estudos de Viabilidade e revisado pela EPE.”
Para finalizar essa primeira parte da síntese, merece maior destaque que para a Secob “a legislação é suficientemente clara ao definir que um estudo de viabilidade técnica e econômica adequado deve conter, dentre outras informações, o orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em quantitativos de serviços e fornecimento propriamente avaliados. Somente assim tais estudos podem ser considerados suficientes para bem fundamentar a análise de riscos envolvida em uma licitação para outorga de concessão.”
O TCU aprovou as contas de Belo Monte apesar de o relatório técnico apontar inúmeras irregularidades e lacunas, inclusive dos estudos ambientais. Situação semelhante à emissão da LP pelo Ibama. Os problemas recorrentes vinculados aos processos de licenciamento e de aprovação de leilões de energia não podem mais ser ignorados e subestimados. Se as informações dos estudos de viabilidade técnica e econômica, fornecidas pela EPE e Aneel não foram suficientes para convencer os técnicos do TCU, o leilão não deveria ser realizado. Se ocorrer será anulado pela justiça.
Aguarda-se que o Ministério Público interfira em mais essa irregularidade no processo de aprovação política de Belo Monte e antes que a Aneel publique o edital do leilão.
(Blog Telma Monteiro, 15/02/2010)