O ano de 2009 representou uma inflexão nos rumos da política ambiental brasileira. Após quase duas décadas de lentos, mas progressivos, avanços, o País começou a andar para trás. A volta de uma visão desenvolvimentista inspirada em modelos ultrapassados, que recoloca o País no papel de grande exportador de matéria prima e energia, fez com que os direitos e garantias conquistados com a redemocratização se transformassem em obstáculos. Esse modelo, que não sabe aproveitar ou respeitar a sociobiodiversidade brasileira, fez com que se implantasse uma agenda de desmonte desses direitos.
Os primeiros passos foram ainda no final de 2008, com o decreto que diminui a proteção de nosso patrimônio espeleológico, antiga reivindicação de alguns setores empresariais, que viam na regra anterior uma barreira à expansão de suas atividades. No ano passado, o Presidente da República deu outro presente ao grande empresariado, modificando – para pior – os critérios de compensação ambiental para empreendimentos de significativo impacto ambiental. Logo após, encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei com o objetivo de facilitar a privatização de grandes extensões de terras públicas federais na Amazônia, que acabou sendo aprovado com o curioso apoio de importantes líderes da oposição ligados ao agronegócio e ao latifúndio, razão pela qual ganhou o carinhoso apelido de “Programa da Aceleração da Grilagem”. Tudo isso fez com que a sociedade civil organizada lançasse um manifesto de repúdio contra o desmonte da política ambiental brasileira, que, no entanto, não teve grande repercussão dentro do Planalto ou do Congresso Nacional.
Mas algumas das principais maldades pensadas pelo Governo Federal, ou pelos grupos conservadores, ou por ambos (há grande diferença?), não puderam ser completadas em 2009, razão pela qual o ano que está começando pode reservar grandes emoções, e mais vários passos atrás.
O perigo na regulamentação do art.23 da CF
O único projeto de lei ligado à temática ambiental inserido no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi o que visa regulamentar o art.23 da Constituição Federal. Esse artigo diz que é competência comum da União, dos Estados e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. Com esse dispositivo, quis o constituinte de 1988 dizer que a tarefa de fiscalizar e prevenir práticas danosas ao meio ambiente é de todos os entes federativos, denotando a importância da matéria. Os mecanismos de cooperação, no entanto, nunca foram estabelecidos, de forma que, em muitos casos, ninguém fazia nada, porque acreditava que a responsabilidade era do outro.
Para superar essa situação, o deputado Sarney Filho (PV/MA) apresentou, há alguns anos, um projeto que visava regulamentar as formas possíveis de cooperação federativa, incentivando o trabalho conjunto, ao mesmo tempo em que tentava organizar melhor algumas competências que não estavam claras. O Governo Lula, no entanto, preocupado com uma suposta falta de clareza legal sobre a competência administrativa para fins de licenciamento ambiental, e alegando que isso ensejaria intermináveis discussões judiciais que atrasariam o início de obras importantes, pegou carona nesse projeto, para apresentar uma proposta de divisão de competências, sobretudo para fins de licenciamento ambiental. Com a apresentação do substitutivo do Executivo, o PLP 12 passou do enfoque da cooperação para o da divisão, centrado, sobretudo, no licenciamento ambiental.
Mas as más notícias não pararam por aí. Aproveitando-se de uma certa indiferença do Executivo com os demais aspectos da lei, e da necessidade de maioria qualificada para aprová-la no plenário da Câmara dos Deputados – trata-se de lei complementar, que exige a aprovação por maioria absoluta –, a bancada ruralista identificou nesse projeto uma boa barriga de aluguel para algumas de suas idéias. Dessa forma conseguiu, em negociações com a liderança do Governo, incluir no projeto um dispositivo que, na prática, significará a ampliação da impunidade no País. A nova regra, que foi aprovada pela Câmara dos Deputados, impede que outro ente federativo – que não aquele que autorizou ou poderia autorizar determinada atividade – possa aplicar qualquer sanção administrativa diante de uma ilegalidade. Assim, por exemplo, uma autoridade pública municipal não poderia mandar uma indústria parar o lançamento ilegal de efluentes tóxicos no rio que corta a cidade, caso ela tenha sido licenciada pelo órgão estadual. Da mesma maneira, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não poderá mais fiscalizar e mandar parar desmatamentos, pois seria competência exclusiva dos estados. E naqueles estados onde a fiscalização é deficiente ou propositadamente ausente? Bom, paciência...
Outro ponto grave diz respeito ao objeto central do projeto: a competência para licenciamento ambiental. Por estarem numa cruzada contra o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), acusado de ser democrático demais, os ruralistas conseguiram tirar dele a competência para definir quais os critérios para identificar que uma obra impacta mais de um estado, atraindo a competência do Ibama. Pela regra aprovada na Câmara, a partir de uma emenda de um deputado petista, a competência para definir essa questão técnica sai do Conama, que é um órgão colegiado com a participação de quase todos os setores da sociedade e dos três entes federativos, para cair no colo do Presidente da República.
O projeto agora está na pauta do Senado Federal. A senadora Marina Silva (PV/AC) já levantou a lebre, apontando os absurdos do projeto. Mas, a depender da solidez do acordo dos ruralistas com o Governo, ela será voz minoritária no plenário.
Licenciamento ambiental pode ser modificado
Além da regulamentação do art.23, outro projeto que pode ganhar espaço nesse primeiro semestre – a partir de julho o Congresso Nacional pára no aguardo das eleições – é o PL 3729, que trata do licenciamento ambiental. Esse projeto, relatado pelo deputado André de Paula (PP/PE), visa trazer para nível legal várias regras sobre licenciamento que estão esparsas em resoluções do Conama ou dos estados. Apesar da pressão exercida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e pelo Ministério de Minas e Energia (MME) para retirar algumas das garantias hoje existentes, sobretudo as boas novidades incluídas nas versões preliminares do relatório, o texto que será apreciado pela Comissão do Meio Ambiente conta com alguns tímidos avanços. Destaque para institucionalização da avaliação ambiental estratégia de planos e programas governamentais que possam gerar significativo impacto ambiental, a qual, se bem aplicada, pode aprimorar substancialmente a eficiência dos processos de licenciamento. Além disso, a versão aprovada avança na democratização das informações, tornando obrigatória a disponibilização dos estudos ambientais na internet e permitindo a realização de audiências públicas em outras fases do processo de licenciamento – para a concessão/renovação da Licença de Operação (LO), por exemplo.
Por ser um bom texto, mesmo que não o ideal, seguramente haverá resistências de vários dos grupos de interesse contrariados, e o projeto corre o sério risco de ser modificado ou enterrado.
Código Florestal na mira
Mas, com certeza, o projeto que mais chamará atenção da mídia, dos parlamentares e da sociedade civil é o que visa modificar o Código Florestal. Desde o ano passado, a comissão especial, criada para analisar algumas das muitas propostas de alteração, vem realizando audiências públicas em Brasília e em diversas partes do País. Estas, pautadas e organizadas sobretudo por organizações ligadas ao agronegócio e pelos deputados ruralistas, que são maioria na comissão, têm se transformado em palco para os defensores de sua aniquilação. O próprio relator, deputado Aldo Rebelo (PcdoB/SP), envolto em teorias conspiratórias e muita pressão ruralista, já vem anunciando que passará a tesoura na lei, que julga ser um instrumento à disposição dos ambientalistas para acabar com o “sucesso” do agronegócio brasileiro.
Para tanto, o relator contará com o apoio implícito do Planalto. A queda de braço entre o Mapa e o MMA sobre o assunto está pendendo mais para o primeiro lado, que conseguiu convencer o Presidente a encampar algumas das principais teses expostas nos projetos sob apreciação, como a alteração no tamanho das Áreas de Preservação Permanente (APPs) e a manutenção de ocupações “consolidadas” em áreas protegidas, como encostas e topos de morro. Isso significa que, se propostas como essas forem aprovadas, não serão vetadas pelo Executivo. A não ser que os desastres do começo do ano, quase todos derivados da ocupação irregular de áreas que, pelo Código Florestal, deveriam ser protegidas, tenham modificado a compreensão do Planalto sobre a questão. O que, infelizmente, é pouco provável.
A promessa do relator é apresentar um texto para ser votado até abril, o que daria tempo para que ele pudesse ser aprovado na comissão antes das eleições. Seguramente será um ótimo argumento populista para muitos parlamentares usarem em suas campanhas à reeleição. Mas se não for aprovado, os ruralistas têm um plano B em andamento: a aprovação do PL 6424 na Comissão de Meio Ambiente.
Objeto de intensa disputa nas semanas finais do ano legislativo de 2009, o relatório hoje existente foi elaborado pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e quase aprovado quando grande parte dos integrantes da comissão estavam em Copenhague, acompanhando as negociações sobre o tratado do clima. Dentre seus destaques está a desoneração da recomposição das APPs e Reservas Legais que foram até hoje desmatadas, o fim da preservação das encostas e topos de morro, a possibilidade dos estados definirem arbitrariamente o tamanho das áreas que devem ser protegidas nas beiras dos rios, dentre outras pérolas.
Lei de Pagamentos por Serviços Ambientais tem poucas chances de andar
Inexplicavelmente, um dos poucos projetos defendido tanto por ambientalistas quanto por ruralistas como uma possível solução para o impasse em torno do Código Florestal dorme em berço esplêndido e tem poucas chances de avançar neste ano, a menos que exista uma mobilização da sociedade para tanto. Quando estava pronto para aprovação na Comissão de Meio Ambiente, após uma longa negociação com o Executivo, os ruralistas manobraram para que ele fosse apreciado antes pela Comissão de Agricultura, onde se encontra parado desde agosto.
Esse projeto pode ajudar a aliviar o clima de tensão em torno da lei florestal. Prevê a compensação financeira a agricultores familiares e populações tradicionais que recuperarem ou preservarem áreas de vegetação nativa, bem como os que adotem práticas agrícolas sustentáveis. Seria um primeiro passo para se tentar aplicar o Código também com incentivos, e não só com repressão. Seu grande defeito é que, apesar de ter conceitos corretos, não tem fontes seguras e suficientes de financiamento. Para o País todo seria destinado, em valores de 2008, algo em torno de R$ 40 mi, o que é evidentemente muito pouco para uma política que se pretende nacional. Esse poderia ser um ponto de aproximação entre ambientalistas e ruralistas: buscar recursos suficientes para uma política nacional de recuperação florestal. Estes últimos, no entanto, parecem que não estão preocupados em resolver o problema.
(Por Raul Silva Telles do Valle, OngCea, 11/02/2010)