Uma década é tempo suficiente – no terreno político-social – para o crescimento, amadurecimento e, talvez, decadência de um “movimento de movimentos” que se propôs a mudar o mundo. Mesmo que seu declínio seja um dado da realidade, seus mentores podem contentar-se com o fato de que o seu oponente, o Fórum Econômico de Davos, atravessa dificuldades ainda maiores.
Os sintomas são bem conhecidos: debater até o cansaço se o que se está fazendo tem sentido, se se deve continuar no mesmo caminho ou mudar o rumo em alguma direção que permita encontrar soluções para os males e mal-estares que se percebem. Com efeito, tanto o Seminário “10 anos depois”, realizado em Porto Alegre, como o Fórum Temático, com sede em Salvador, dedicaram boa parte do seu tempo para constatar a perda de vitalidade de um movimento que pretendeu ser a alternativa à globalização neoliberal.
Este ano, o Fórum Social Mundial não contou com um evento central, mas com atividades realizadas em cerca de 20 cidades de diferentes partes do mundo, entre elas as duas capitais brasileiras (Porto Alegre e Salvador). A opção pela descentralização é um indicador de que os grandes eventos de dezenas de milhares de pessoas exerceram um papel importante em seu momento, no começo da década, mas nesta etapa não teria sentido repeti-los já que, segundo se pode constatar nas últimas edições, o formato foi se desgastando.
O evento de Porto Alegre, que aconteceu a partir de 25 de janeiro, consistiu em um conjunto de debates sociais que são, de fato, a razão de ser do Fórum. Certamente, não era intenção dos organizadores apostar na massividade que arrastou mais de 150.000 pessoas nas edições anteriores, mas os debates reuniram agora menos de 10% do pico anterior de participação.
Em Salvador, pelo contrário, no Fórum Temático realizado entre os dias 29 e 31 de janeiro, a presença dos movimentos era aguardada com certa expectativa. A opção por descentralizar o evento, com mesas de debates em hotéis da cidade e as atividades dos movimentos relegadas ao recinto da Universidade Católica, teve um efeito negativo para a participação social. Ao contrário do que acontecia em Porto Alegre anos atrás, quando a cidade, por alguns dias, girava em torno do Fórum, na capital baiana as pessoas não tomaram conhecimento do evento altermundialista.
Buscando novos rumos
A virada na situação política mundial e na América Latina parece estar na base de um certo desconcerto que se plasma no aparecimento de propostas notoriamente divergentes. Nas primeiras edições dos Fóruns, se registrava um forte ascenso do conservadorismo comandado por George W. Bush, a cavalo das invasões do Iraque e Afeganistão. Neste continente, estavam estreando os governos da mudança e se registrava ainda uma onda de mobilização social que desembarcou com suas múltiplas cores nos eventos multitudinários de Porto Alegre.
A crise mundial, a chegada de Barack Obama à Casa Branca, o outono dos governos progressistas e de esquerda da região e a crescente desmobilização social, pautam uma conjuntura bem diferente. O tom da Carta da Bahia, documento final aprovado por uma assembleia de movimentos, delata o novo clima. A declaração enfatiza o rechaço “à presença de bases estrangeiras no continente sul-americano”, a defesa da soberania e das grandes reservas de petróleo descobertas no litoral brasileiro.
A Carta faz uma defesa fechada do governo de Lula. “No Brasil, muitos avanços foram conquistados pelo povo durante os sete anos do governo Lula”. Menciona que ainda falta realizar reformas estruturais, mas chama a apoiar os diversos governos “neste período de embate político que se aproxima”, em clara alusão aos processos eleitorais vindouros.
Neste ponto, aparecem fortes divergências. O MST, crítico com Lula por não ter feito a prometida reforma agrária, não mobilizou suas bases para o Fórum como em ocasiões anteriores. Em Salvador, o movimento mais forte foi o dos sem-teto, que em diferentes oficinas mostrou clara distância tanto em relação ao governo federal como estadual, comandado pelo petista Jacques Wagner.
A distância, mais social que política, entre movimentos e governos foi uma das características do Fórum de Salvador. Um dos “intercâmbios” com os movimentos se realizou em um hotel de cinco estrelas, com a participação do governador Wagner, o ministro de Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, e o Secretário Especial para Assuntos Estratégicos da Presidência, Samuel Pinheiro. Não era esse o melhor ambiente para movimentos de base que, como os de Salvador, são integrados em sua imensa maioria por negros pobres que vivem em favelas, que são sistematicamente rechaçados nesses espaços.
Na visita que realizamos a três ocupações urbanas dos sem-teto, pudemos comprovar que as bases desses movimentos não tinham a menor ideia do que estava acontecendo no centro da cidade, nem mostravam intenção de participar quando eram informados de que deviam inscrever-se em outro hotel, também cinco estrelas, localizado no coração elitista da cidade racista. Se alguma vez os Fóruns foram um encontro genuíno de movimentos sociais, de fato se converteram em encontros de elites, intelectuais, membros de ONGs e representantes de organizações sociais.
Nas palavras de Eric Toussaint, membro do Conselho Internacional do FSM, um dado central é que o encontro “foi patrocinado pela Petrobras, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Itaipu e com forte presença de governos”. Ou seja, grandes multinacionais que também estão no encontro empresarial de Davos, onde Lula foi proclamado Estadista Global. Na sua opinião, o núcleo histórico de fundadores do Fórum, onde têm especial presença brasileiros vinculados ao governo, é os mais avesso a buscar outros formatos, que “se apóiem em forças militantes voluntárias e se alojem em casas de ativistas”.
Questão de Estado
Quanto ao formato, as propostas são muito variadas. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos crê que o Fórum fracassou na Europa, Ásia e África por não ter conseguido “conquistar a imaginação dos movimentos sociais e dos líderes políticos” como aconteceu na América Latina. Acredita que o FSM deveria ter participado com uma posição própria da Cúpula de Copenhague e que o próximo encontro, a ser realizado em Dacar, no Senegal, deverá “promover algumas ações coletivas” na direção de buscar “uma nova articulação entre partidos e movimentos”.
Toussaint via mais longe e aspira que os movimentos acolham a proposta lançada por Hugo Chávez de criar uma Quinta Internacional, que seria um “instrumento de convergência para a ação e para a elaboração de um modelo alternativo”. No outro extremo, o sociólogo brasileiro Emir Sader acredita que o Fórum já fracassou porque, ao não estreitar vínculos com os governos progressistas, “ficou girando no vazio”.
Dois temas continuam estando no centro dos debates, como estas posturas manifestam: a relação entre governos e movimentos e o grau de centralização e de organização que o Fórum deve ter. Há aqueles que, como Toussaint, defendem um modelo tradicional, que se resume em “uma frente permanente de partidos, movimentos sociais e redes internacionais”, porque é a melhor forma de impulsionar a mobilização. Acredita, além disso, que o golpe de Estado em Honduras se consolidou porque a mobilização “foi totalmente insuficiente”.
Boaventura de Sousa Santos joga mais lenha na fogueira ao abordar o outro tema em debate. Defende que “agora existe um novíssimo movimentos social que é o próprio Estado”. Sustenta sua tese assinalando que se o Estado fica entregue à sua própria lógica, “é capturado pela burocracia e pelos interesses econômicos dominantes”. Mas se os movimentos, que sempre trabalharam por fora dos Estados, o considerare como “um recurso importante”, esse Estado “pode ser apropriado pelas classes populares como está acontecendo no continente latino-americano”.
Em sua comunicação no Seminário “10 anos depois”, Immanuel Wallerstein apresentou uma perspectiva que inclui uma variante a mais, estirando as diferenças entre os militantes. Defendeu que os impactos maiores da crise virão nos próximos cinco anos, com um possível default da dívida dos Estados Unidos, a queda do dólar e o surgimento de regimes autoritários, incluindo alguns países da América Latina, e a crescente demonização de Obama nos Estados Unidos. Acredita que estão em formação vários blocos geopolíticos que excluem Washington: Europa Ocidental-Rússia; China-Japão-Coreia do Sul; América do Sul liderada pelo Brasil.
Nesse cenário, opina que nas duas próximas décadas a esquerda social e a política irão percebendo que “a questão central não é acabar com o capitalismo, mas organizar um sistema que o suceda”. Nesse lapso, a confrontação entre direita e esquerda cujas forças terão se expandido a todo o mundo, será inevitável, mas não será uma batalha entre Estados, mas “entre as forças sociais mundiais”. E acredita, além disso, que “falta uma visão estratégica de médio prazo” à esquerda e aos movimentos. Este último ponto se mostrou inteiramente certo, pelo menos no último Fórum Social Mundial.
(Por Raúl Zibechi*, IHU On-line, Ecodebate, 08/02/2010)
*Raúl Zibechi é jornalista uruguaio, professor e pesquisador na Multiversidade Franciscana de América Latina e assessor de vários coletivos sociais.