Órgão ambiental dos EUA recomendou etanol como combustível ecológico. Segundo o setor, esta vitória é trunfo para derrubar tarifas internacionais
Para os produtores brasileiros de etanol, 2010 será o ano de concentrar forças para derrubar barreiras e, enfim, ‘desencantar’ o antigo sonho vender globalmente o álcool de cana-de-açúcar fabricado no Brasil e transformar o produto em commodity negociada internacionalmente, como o petróleo.
O setor ganhou "injeção de ânimo" com notícias divulgadas esta semana, como a decisão da Environmental Protection Agency (EPA), o "Ibama dos EUA", de classificar o álcool de cana-de-açúcar como “combustível avançado” e a parceria firmada entre Shell e Cosan, anunciada na segunda-feira (1).
Na avaliação do presidente da Unica, Marcos Jank, a certificação oficial do combustível como opção "limpa" abre portas para a internacionalização do produto, mais conceituado pela agência do que o álcool à base de milho feito nos EUA. Para Jank, a certificação ajuda até a resolver problemas antigos, como a tarifa de importação imposta pelos EUA para o álcool brasileiro.
"Na medida em que o etanol brasileiro ganha um passaporte bem melhor que o etanol do milho, a operação de produção de etanol muito mais atrativa. É por isso que grandes petroleiras como a Shell estão interessadas", disse Jank ao G1.
Para o executivo, os usineiros devem aproveitar o momento de atenção e potenciais investimentos dedicados ao setor para conquistar avanços definitivos, como políticas públicas de estímulo à produção de energia renovável e um marco regulatório específico para o etanol.
Leia os principais trechos da entrevista:
- G1: A Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos [EPA, na sigla em inglês] confirmou o etanol de cana-de-açúcar como biocombustível que pode contribuir para a redução das emissões de gases causadores do efeito estufa. Isso é uma nova injeção de ânimo para o setor?
- Jank: Não tenho dúvida. Acho que estamos entrando em uma terceira fase da história do etanol. Houve a primeira, da substituição do petróleo nos anos 70, quando o Brasil tinha muita cana e resolveu ser o primeiro país do mundo a tentar uma alternativa renovável quando nem se falava em clima.
Depois, o programa entrou em crise nos anos 90 e veio o renascimento em 2003, quando a indústria automobilística resolveu transformar o Brasil no maior laboratório de carros flex do mundo. Hoje, 92% dos carros novos são flex, 40% da frota.
Agora está começando a nascer a terceira fase, que é a do etanol no mundo. Eu acho que essa decisão do EPA, o ‘Ibama’ dos EUA, [de] reconhecerem a cana como biocombustível avançado e o milho apenas como convencional, isso é o passaporte do nosso etanol para o mundo.
Nós ganhamos o passaporte, [mas] não conseguimos viajar ainda, porque falta derrubar a tarifa. Nós tivemos uma grande vitória, mas isso ainda não garante o acesso aos mercados.
- Essa recomendação da agência ambiental pode de alguma maneira influenciar a entrada do etanol brasileiro no mercado norte-americano?
- Tem imensa influência. Em todos os países grandes em que as grandes petroleiras atuam estão sendo implementadas legislações que obrigam a reduzir carbono no combustível. Na medida em que o etanol brasileiro ganha um passaporte bem melhor que o etanol do milho, a operação de produção de etanol fica muito mais atrativa.
A Shell é a terceira petroleira que entrou [no mercado de etanol, por meio de uma parceria com a brasileira Cosan, anunciada nesta semana]: a primeira foi a BP, que montou uma usina em Goiás. Depois [foi] a Petrobras, que falou que faria muitos investimentos e até agora só comprou uma pequena usina.
- Esse mercado mundial de etanol tem chances reais de se tornar realidade?
- Tem duas fases nessa história. Uma é a de que os órgãos reguladores certifiquem a qualidade dos diversos biocombistíveis, principalmente na questão ambiental, que foi o que o EPA fez agora. A vitória dessa semana é fruto de dois anos de trabalho muito intenso que envolveu o governo, a Unica e um monte de pesquisadores brasileiros.
A segunda etapa daqui para a frente é a redução das barreiras ao comércio, principalmente as tarifas dos EUA, Europa e Japão. A tarifa americana está programada para desaparecer em 31 de dezembro deste ano, só que desde 1980 ela é uma tarifa temporária e cada vez que ela vai desaparecer o lobby do milho vai lá e renova, e renova, e renova.
O que é diferente desta vez? Este ano, pela primeira vez, há muitos interesses em Washington para que a tarifa não seja renovada. A Unica está em Washington há três anos, montamos um escritório e atuamos o tempo todo para entender esse universo e participar dele. Para completarmos esse ciclo , precisamos agora batalhar para que tarifa caia, não só nos EUA mas também em outras regiões do mundo que ainda praticam a tarifa alta.
- O que a Unica pretende fazer para negociar a derrubada das barreiras?
- Nos EUA, o Legislativo fixa as barreiras. Então nossa principal atuação tem que ser no Congresso Americano. Cada lugar é de um jeito. Temos hoje sete pessoas e muitos consultores e especialistas trabalhando fora do país e os principais focos da atuação deles são o debate de clima, as regulamentações relacionadas a isso e depois as barreiras.
- O sr. é a favor da redução de taxas de importação ao etanol estrangeiro também no Brasil?
- Sim, inclusive a Camex (Câmara de Comércio Exterior) está para julgar um pedido nosso para zerar a tarifa de importação do etanol para o Brasil. O mais importante para nós é a coerência. Se estamos falando para o mundo inteiro que o etanol precisa ser uma commodity global, por que o Brasil então protege o etanol? Essa tarifa foi fixada no Mercosul e houve pressão de outros países para que ela ficasse nesse nível de 20%, mas nós entendemos que isso tem que desaparecer. Agora isso não deve desaparecer de graça, certo? É preciso que outros países façam o mesmo.
- No ano passado, o setor sucroalcooleiro do Brasil fez uma pausa na forte expansão dos últimos tempos, por causa da crise e de outros fatores. Qual a expectativa para 2010?
- A gente realmente sofreu muito com essa crise financeira. Dados do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) mostram que o nosso setor foi o que mais investiu no país em relação ao seu faturamento: eram 115 novas plantas desde 2005. Uma parte dessas novas plantas passou grandes dificuldades com a crise financeira global.
Esse processo vai continuar acontecendo. Hoje, são 430 usinas controladas por 200 grupos econômicos. São muitas empresas familiares, com pouca escala, dificuldade de acesso a capital, então eu acho que essa consolidação vai acabar acontecendo e gerar menos empresas e mais sólidas.
- Em 2009, usinas assinaram com o presidente Lula documento que prevê uma maior formalização dos trabalhadores do setor. Houve evolução neste sentido?
- A mecanização está acontecendo de forma bastante acelerada. Como você sabe, nós antecipamos o fim da queima da cana em São Paulo de 2021 para 2014. Nesse momento, já estamos chegando a 55% de área sem queima. São mais ou menos 600 máquinas [a mais] por ano, é uma quantidade grande de máquinas muito caras.
Por isso, lançamos no meio do ano o maior programa de requalificação de trabalhadores manuais da cana que há houve no planeta. A ideia é pegar 8 mil cortadores de cana por ano e requalificá-los. Sessenta por cento deles serão requalificados para trabalhar conosco, e 40% serão qualificados para outras atividades. Com o presidente Lula, assinamos um compromisso em que identificamos as 30 melhores práticas trabalhistas que são aplicadas no setor e as estabelecemos como parâmetro para usinas que assinaram este compromisso.
- O preço do etanol hoje é comparativamente mais caro do que o da gasolina. Há maneiras de evitar que isso ocorra sempre antes da colheita da safra?
- A gente começou essa safra com preços ao consumidor em São Paulo inferiores a R$ 1 e terminamos próximos a R$ 2. Essa variação não interessa nem ao produtor, nem ao consumidor, nem ao governo. Foi um ano muito atípico: em geral a variação de safra e entressafra é de cerca de 50%, o que já é alto.
O que aconteceu neste ano é que com a crise, as empresas venderam álcool muito barato no começo da safra para fazer caixa, o que fez com que o consumo disparasse. Quando veio o segundo semestre, o nível de chuva foi tão grande que a gente perdeu 4 bilhões de litros de álcool por causa da chuva, ficamos praticamente 70 dias sem moer. A chuva foi atípica e a crise financeira foi atípica. O presidente Lula conversou conosco, falamos com vários ministros e estamos trabalhando para implementar medidas, como criar estoques reguladores que reduzam essa volatilidade, [que] não interessa a ninguém.
- O sr. acha que o etanol ainda é ‘refém’ do petróleo? Ou seja, quando há mais descobertas de petróleo e o preço do produto cai, o etanol ‘sai de moda’?
- É indiscutível que o mundo acordou para questão da mudança do clima. Então toda a indústria petroleira está buscando saídas, a vinda da Shell é prova disso. Essa busca por uma matriz mais limpa e renovável é uma questão de legislação, os países estão desenvolvendo legislações duríssimas nessa área. Mesmo que Copenhague tenha sido um fracasso, os países estão caminhando.
O Brasil nesses 30 anos se tornou um grande exemplo: a cana é a segunda fonte de energia do país, 17% da matriz energética. Eu acho que, quando você descobre uma grande jazida de petróleo, é óbvio que é bom para o país. Agora, isso não pode acontecer em detrimento de uma experiência absolutamente inédita e bem-sucedida em biocombustíveis. Essa experiência tem que continuar; tem empresas querendo fazer bioplásticos a partir de etanol, tem empresas testando a possibilidade de fazer diesel e querosene a partir de cana de açúcar. Estamos testando motocicletas flex, espero que saia o ônibus a etanol. Podemos ser grandes produtores e exportadores de petróleo, mantendo uma matriz energética limpa no país.
(Por Ligia Guimarães, G1, 06/02/2010)