Integrante do núcleo fundador do Fórum Social Mundial (FSM), o sociólogo Cândido Grzybowski avalia que o encontro contribuiu para alterar a agenda da política internacional. Cita até mesmo o Fórum Econômico Mundial, de Davos, evento ao qual o FSM surgiu como contraponto e que, depois do encontro de Porto Alegre, passou a incluir na sua pauta temas como pobreza, que antes eram ignorados.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Grzybowski avalia os dez anos do FSM - citando a troca de informações e a criação de redes internacionais de organizações como grandes frutos -, projeta o futuro do Fórum e levanta os desafios do movimento para colocar em prática suas ações.
Jornal do Comércio - Qual sua avaliação do FSM?
Cândido Grzybowski - Surgimos há dez anos contra a arrogância do pensamento único, o Consenso de Washington, a ideia de tudo pelo mercado, de que o pobre, no fundo, é um não bem-sucedido, o responsável pela sua pobreza - ou seja, não é uma questão de injustiça social, mas falta de competência. Imagina o que isso significa em termos de valores e, sobretudo, de não fazer sentido a solidariedade: o que passa a ter sentido é se preparar para a vida. O discurso era de que não existia alternativa ao mercado. Havia certo desânimo e houve uma reação contra isso.
JC - Que levou ao FSM...
Grzybowski - No final de janeiro de 2000, Oded Grajew (do Instituto Ethos) e Francisco Whitaker (da Comissão Brasileira Justiça e Paz) chegaram de Paris, logo depois do Fórum de Davos. E o final de 1999 e o início de 2000 foi um período movimentado, teve manifestações contra a OMC (Organização Mundial do Comércio) em Seattle (EUA), o presidente do FMI (Fundo Monetário Internacional) havia levado uma torta na cara. Daí, ao voltar, Oded e Chico tiveram a ideia: se tem o Fórum Econômico, por que a gente não faz o Fórum Social Mundial? E por que não em Porto Alegre, onde tem Orçamento Participativo. Fizemos a primeira reunião em fevereiro de 2000.
JC - A primeira edição já saiu em janeiro de 2001.
Grzybowski - Aprendi com o Betinho que essas coisas a gente faz no ato. No dia seguinte já me reuni com a Fundação Ford, que se comprometeu com US$ 100 mil, depois, obtivemos US$ 300 mil de uma entidade que também financiava o Ibase.
JC - Mas formou-se um núcleo de orgaizações do FSM.
Grzybowski - Depois de diversas reuniões entre as entidades, formamos um Comitê Organizador do FSM - Abong (Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais), ATTAC (Associação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos), CBJP (Comissão Brasileira Justiça e Paz), Cives (Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania), CUT (Central Única dos Trabalhadores), Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em agosto de 2000, em Genebra (Suíça), houve uma reunião de avaliação da Conferência de Desenvolvimento Social de Copenhague (Dinamarca). E lá, o (então vice-governador do Rio Grande do Sul) Miguel Rossetto (PT) anunciou a ideia do FSM em Porto Alegre. A divulgação era nesses eventos e na internet.
JC - Supreendeu o público da primeira edição?
Grzybowski - Viemos na Pucrs em maio para olhar o Centro de Convenções e achamos o espaço mais que suficiente, esperávamos no máximo 6 mil pessoas. Mas vieram 20 mil. E nem havia projeto de fazer outro Fórum no ano seguinte, a ideia começou no próprio encontro. Entre 2001 e 2002 criamos a Carta de Princípios - sobre quem poderia participar, como seria -, e surge a ideia do Conselho Internacional, com as principais redes de organizações que vieram no primeiro FSM.
JC - Qual a contribuição do Fórum para a agenda global?
Grzybowski - Primeiro, mudou a agenda de Davos, dos ideólogos do mercado neoliberal. Eles têm um poder de irradiação enorme, todos os chefões da mídia que controlam o grosso da comunicação no mundo estão lá. E tem mais de 200 megaempresas, das quais 100 são maiores do que muitos países. Bem, eles queriam mercantilizar tudo - a vida, as relações, não tinha outra saída. O que aconteceu em 2002? Inseriram o debate sobre a pobreza. Começaram a convidar ativistas, celebridades que defendem causas, como o Bono Vox. Chamaram agora o (presidente) Lula para ser homenageado. E até declararam que é incontornável a questão da injustiça social. Esse é o nosso discurso! Antes, eles achavam tudo isso um absurdo.
JC - O Fórum conseguiu materializar a ideia de uma alternativa?
Grzybowski - O slogan Um Outro Mundo é Possível surgiu para dar esperança, fazer sonhar. Isso faz a diferença. Se você não acredita que um outro mundo é possível, não vai a lugar nenhum. Então, o clima que havia antes era de mal-estar em várias organizações e movimentos e muito desencontro. Até a proposta de nos juntarmos para discutir um outro mundo possível no FSM. E isso pegou.
JC - A maior contribuição do Fórum é essa troca de informações e o encontro de ONGs e associações?
Grzybowski - Essa formação de redes em escala mundial para articular decisões talvez seja uma das grandes contribuições do FSM. Mas mais do que isso, é essa inteligência coletiva que se cria. Todos temos uma reflexão sobre esse sistema, e há impasses, porque não é possível dar conta de tudo. Mas acho importante que uma mesa traga opiniões contrárias, porque no conjunto vamos saber mais do que individualmente. O mais importante é o diálogo inter-movimentos.
JC - O senhor discorda da tese do presidente Lula - ele disse que o Fórum deveria definir uma carta com poucas reivindicações para poder avançar?
Grzybowski - Posso dar uma proposta, mas como referendá-la? Teria que sair catando assinaturas, convocar uma reunião. Será que as pessoas gostariam que os dois, três ou quatro que compõem a organização do FSM propusessem e eles fossem lá votar, assim como se faz em um congresso em que, antes de começar, já se prepara a declaração final? O FSM não é isso.
JC - Mas e a definição de ações, como fica?
Grzybowski - Isso não quer dizer que não se façam ações: em 2003, por exemplo, (o dia internacional de mobilização contra a Guerra do Iraque) foi uma ação que surgiu no FSM e envolveu todo o mundo. Agora vou dar outro exemplo: em 2005, teve aquela famosa carta dos 19 (assinada por 19 intelectuais e prêmios Nobel que estiveram no Fórum). Mas que adesão teve aquilo? Isso tem a ver com a tradição política de esquerda, muitos se acham "os iluminados", propõem e acham que isso é suficiente. Talvez até houvesse consenso sobre aqueles pontos, mas teria que consultar mais de 150 mil pessoas que participaram do Fórum e isso exige trabalho. Você vai discutir, ouvir a opinião de outro, que vai dizer que "não é bem assim". Eles estavam dispostos? Não, eles são os iluminados. Falaram da tributação de transações financeiras internacionais. Agora a taxa está sendo implementada, não por estar naquele documento, mas porque houve um movimento internacional chamado ATTAC, de grande impacto, que levantou essa bandeira. Era visto como louco e hoje os governantes estão propondo, questionando os paraísos fiscais.
JC - A guinada à esquerda da América Latina nos anos 2000 teve influência do Fórum Social Mundial?
Grzybowski - São situações que acontecem porque se criou um ambiente. A ideia de que era possível acabou sendo uma bandeira de alguns deles. E foi até do (Barack) Obama (presidente dos Estados Unidos), que usou o Yes, We Can. O Fórum Social "Uma Outra América É Possível" aconteceu um ano antes da eleição, em Atlanta (EUA), terra do Martin Luther King, e o Obama se inspira no trabalho dele. Não conseguíamos montar nada nos EUA até falarmos com um movimento de justiça ambiental - é formado por negros, o pessoal que sofreu com o furacão Katrina. Eles assumiram, e o Fórum saiu. Agora, em 2010, vai ser em Detroit, e grande - numa cidade de 6 milhões da habitantes, coração da indústria automobilística, que perdeu seus empregos.
JC - Como foi essa expansão do Fórum pelo mundo?
Grzybowski - O Fórum policêntrico foi uma invenção em função da dificuldade de montar o FSM de 2006 na África. Como havia três candidaturas, aceitamos todas - então saiu em Caracas (Venezuela), Bamako (Mali) e Karachi (Paquistão). Em 2007 se fez no Quênia, em Nairóbi, e não foi fácil. Mas começou a crescer internamente um debate sobre o futuro do Fórum.
JC - É definitiva essa divisão "ano ímpar centralizado e ano par descentralizado"?
Grzybowski - Entre 2006 e 2007 ficou decidido, a pedido dos movimentos sociais, que fosse um ano centralizado e outro não, para poder enraizar mais o FSM e disseminá-lo. A única coisa que é cobrada ao usar o nome é respeitar a Carta de Princípios. Mas não precisa de autorização para fazer. Esse Fórum metropolitano de Porto Alegre 2010 poderia ser feito todos os anos.
JC - Em 2005, o público em Porto Alegre superou 150 mil e ficou uma dívida no orçamento do FSM. Isso influenciou para sair da cidade?
Grzybowski - A gente desenvolveu critérios sobre onde fazer. O FSM é mundial. Como ser mundial se está em um lugar só? Aí exclui quem não tem dinheiro para participar.
JC - Mas o Econômico é só em Davos, por que não o Fórum de Porto Alegre?
Grzybowski - Em Davos, são empresários, reúnem 2.500 pessoas que representam mais ou menos 85% do PIB mundial. Eles pagam US$ 20 mil de ingresso, nós cobramos R$ 20,00. Lá é excludente. Para nós, é importante mobilizar e incluir. Esse modelo de mundialização vai continuar, mas isso não quer dizer que o FSM não vá voltar a Porto Alegre. O evento pode ser do Estado, da região Sul, do Cone Sul.
JC - A questão política - saída do PT da prefeitura -, teve influência?
Grzybowski - Não, tanto que antes disso, em 2004, fomos a Mumbai (Índia) e depois voltamos para cá em 2005.
JC - Qual a chance de Porto Alegre sediar a edição centralizada de 2013?
Grzybowski - Muito remota, porque depois de 2011 (em Dakar, no Senegal), ainda temos de ir à Ásia, que é metade da humanidade, e fomos só uma vez a Mumbai e outra a Karachi, naquele fórum policêntrico. É muito pouco provável uma edição centralizada em Porto Alegre. Mas podem acontecer inovações na forma.
JC - E o seminário dos dez anos do Fórum?
Grzybowski - Quando foi pensado, era para enfrentar o debate "O FSM não acabou?". Mas depois, em Belém (PA), essa ideia caiu, porque foram mais de 120 mil pessoas (em 2009). Então, o Fórum ressurge e com muitos jovens. O Ibase fez uma pesquisa e aponta que eles são maioria. A gente ainda não soube incorporar a temática dos jovens no FSM. Apenas agora eles entraram no Conselho Internacional. E em Belém houve uma explosão, 72% dos participantes com menos de 34 anos. As crianças e adolescentes da época em que iniciamos o FSM estão tomando o evento para si, então, o Fórum não vai acabar. É uma espécie de universidade de cidadania planetária, criando uma inteligência coletiva sobre os desafios do mundo.
JC - E qual é o papel da imprensa neste aspecto?
Grzybowski - A imprensa hoje é mais importante do que o Parlamento. O poder, a disputa política principal se faz nesse campo, que marca o debate. É onde se reflete o estado de cidadania de uma sociedade. Por exemplo, nenhuma CPI partiu de iniciativa do Parlamento, todas saíram porque a imprensa apontou o problema. Por isso, acho que o principal efeito do FSM é nesse campo do imaginário, que é até mais importante do que decidir uma ação concreta, política. Até porque, onde estão as principais decisões políticas que afetam a nossa vida? No Banco Central. Ninguém lá é eleito. E é assim no mundo inteiro, o poder das corporações levou a uma espécie de privatização do poder. Quem é o Comitê de Política Monetária (Copom)? Todos são banqueiros.
JC - E a cobertura da imprensa sobre o FSM?
Grzybowski - Chegamos de surpresa, o que é bom para a imprensa. Então, no primeiro ano, mesmo criticando, era uma novidade que valia a pena noticiar. Mas na medida em que isso é uma disputa de agenda, de ideias e de imaginário, monta-se um campo social que não é neutro, há uma disputa. Mas aí o Le Monde Diplomatique, o Libératión estavam dando destaque e a imprensa aqui "baixando pau". Em 2003, adotei uma estratégia: convidei gente da grande mídia para mediar os debates. E o El Pais, que nunca tinha vindo, veio, O Globo passou a editar um caderno especial durante o Fórum, veio canal de televisão - eu liguei para o Roberto Marinho e disse que precisava de sua ajuda para mediar um debate em Porto Alegre. A cobertura foi muito diferente, deixou de ser só a curiosidade de alguém que tirou a roupa no Acampamento da Juventude. A evolução foi cada vez maior com a imprensa. Ano passado em Belém, veio até o correspondente da revista The Economist, que escreveu: "Enquanto em Davos é um velório, aqui é a festa da esperança."
JC - Como o senhor analisa a relação dos movimentos sociais com a política-partidária?
Grzybowski - A política existe e contamina tudo. O problema é que no Brasil as opções podem se tornar problema no pós-eleição. Por exemplo, o MST se mostra contra José Serra (PSDB, candidato à presidência da República). Se ele vencer, o MST vai ser marcado por quatro anos. Não temos maturidade política para reconhecer que uma eleição é medir a relação de forças. Quem ganhou não pode excluir ninguém, representa a todos. A democracia brasileira ainda tem muito a aprender. Aqui a luta política deixa sequelas.
(Por Guilherme Kolling, JC-RS, 01/02/2010)