Mais de 400 famílias de pequenos agricultores estão ameaçadas de expulsão das suas terras para dar lugar à monocultura da cana. A área das comunidades dos Baixões, município de Barra – BA, está sendo dividida pela empresa mineira Caossete, intermediária dos herdeiros da fazenda Boqueirão, na venda da terra a um grupo estrangeiro. A empresa alega reconhecer as posses das famílias e vem concedendo escrituras de áreas muito inferiores àquelas tradicionalmente utilizadas por elas. As escrituras destas áreas estão sendo lavradas num cartório de Sete Lagoas – MG e segundo os advogados da Caossete, “só poderão ser registradas depois de cinco anos”.
A região em conflito abriga um grupo de 10 comunidades, que vivem em regime conhecido por “fundo de pasto”, pelo qual os agricultores, há dezenas e até centenas de anos, usam coletivamente a terra, principalmente para pastagens de animais. A área é propícia para o cultivo de diversas lavouras como milho, feijão, mandioca, arroz, abóbora, melancia e abriga uma ampla área de matas preservadas, onde também pastejam as criações de bovinos, caprinos e ovinos. Segundo relatos dos moradores, as comunidades mais antigas remontam ao século XIX e outras mais novas foram formadas a partir do ano de 1935.
O território destas comunidades faz limite com a Serra do Boqueirão e com antigas fazendas. Uma destas fazendas, que leva o nome da serra, é propriedade de coronéis da Barra e foi passada para seus herdeiros ao longo dos anos. A família Pinto já fez várias investidas na tentativa de se apossar da área, com a alegação que esta terra estaria contemplada na escritura da fazenda Boqueirão. Este, porém, é um capítulo bastante duvidoso desta história, pois a suposta escritura não diz exatamente quais outras fazendas fazem limite com a Boqueirão.
“De 1935 para cá, eu não conheço nenhum benefício dos Pinto, conheço benefício dos Malabá”, diz o agricultor Zezito Ramos, da comunidade Baixão do Malabá. As comunidades têm sofrido ameaças desde os anos 1960. Em 1972, quando houve uma tentativa de grilagem, moradores recorreram à Imprensa Nacional em Brasília, como forma de denunciar e pedir apoio às autoridades competentes. O caso teve repercussão nacional, sendo divulgado no jornal Diário Brasiliense.
Grilagem com cara de “boazinha”
Variantes feitos pela fazenda. Foto: CPT Barra.Há um ponto de interrogação sobre a legitimidade dos documentos da fazenda. Em várias ocasiões, reunidos com os posseiros, representantes de diversos órgãos asseguraram que as terras ocupadas pelas comunidades jamais pertenceram à família Pinto e são devolutas. Porém, o INCRA, na década de 1980, encaminhou processo para desapropriação da área, o que só pode ocorrer com áreas comprovadamente de propriedade particular.
Na tentativa mais recente, os herdeiros do Dr. José Pinto – Aécio, Cássio, Eugenio e Paulo – anunciaram a venda da Fazenda Boqueirão a um grupo Sul-coreano de fármacos – a Celltrion. Esta empresa pretende cultivar cana para produção de etanol e açúcar, além de outras oleaginosas próprias para produção do “agrodiesel”. Contudo, a superfície anunciada para a venda corresponde a aproximadamente 70 mil hectares e inclui a área ocupada pelas comunidades, equivalente a 60% deste total.
A nova grilagem é sutil e aparenta a falsa imagem de justiça social e reconhecimento dos direitos. Os advogados da Caossete alegam estar cumprindo com a sua função social da terra, reconhecendo as posses dos moradores. Na verdade, estão concedendo escrituras que não podem ser registradas e têm áreas muito inferiores às que são de fato utilizadas pelas comunidades. Topógrafos e “seguranças” estão medindo áreas, entrando em roças, abrindo variantes, derrubando cercas, ameaçando pessoas, inclusive de morte. A polícia tem se prestado a atuar em apoio, como forma de coagir e desmobilizar o povo. A situação de conflito é clara e preocupante.
Volta ao passado colonial
Trator que está abrindo as variantes. Foto: CPT Barra.Cabe destacar que esta nova roupagem usada na grilagem de terra deriva do incentivo governamental à produção de agrocombustíveis, no caso da Bahia através do programa Bahiabio do Governo do Estado.
Este fato remete a episódios anteriores da história, como a substituição da produção de algodão, café, anil e fumo, nas colônias inglesas das Antilhas, no século XVII, pela cana-de-açúcar. A cana mudou completamente a estrutura produtiva das ilhas, pois, ao contrário das pequenas propriedades predominantes na época, demandava grandes extensões de terra e dependia inexoravelmente da mão-de-obra escrava.
No passado mais recente, um dos casos mais emblemáticos foi o “escândalo da mandioca”, na década de 1970, quando uma das empresas envolvidas, a Camaragibe, grilou áreas das comunidades de “fundos de pasto”, em Riacho Grande, município de Casa Nova – BA, para conseguir recursos do PROALCOOL, programa oficial de incentivo a produção do álcool, no caso, a partir da mandioca. Como se tratava de fraude, a área e as instalações foram tomadas pelo Banco do Brasil como pagamento de parte da dívida do financiamento.
Passados 30 anos, a mesma área tem sido alvo de tentativa de grilagem, através de empresários “laranjas”. A resistência das comunidades – quatro ao todo, com 360 famílias – continua incansável.
Mesmo contra as forças contrárias, o povo dos Baixões novamente se move para barrar mais esta tentativa de usurpação dos seus direitos e de sua dignidade. Com apoio da CPT as comunidades resistem com firmeza. Centenas de pessoas se reúnem com frequência, a fim de traçar estratégias de afirmação e garantia dos seus territórios e de seu modo de vida sustentável.
(CPT Bahia, EcoDebate, 28/01/2010)