Não é de hoje que Marc Dourojeanni, ambientalista veterano e colunista de O Eco, discorre sobre as ameaças de grandes obras de infra-estrutura ao futuro da Amazônia. São dezenas de artigos que detalham incongruências e inconsistências de tantas intervenções. Elas se avolumam, se agravam, e continuam muito mal explicadas para a sociedade. Por isso, juntos, Marc, Alberto Barandiarán e Diego Dourojeanni resolveram iniciar a segunda década do milênio publicando um livro que traz a inestimável contribuição de detalhar de forma clara, objetiva e completa quais são os empreendimentos planejados para a Amazônia peruana, suas motivações e suas consequências como um todo para a região. Fizeram eles o que o governo tem se esquivado a revelar.
“Amazonía peruana em 2021: Explotación de recursos naturales e infraestructuras: ¿Qué está pasando? ¿Qué es lo que significan para el futuro?” (em espanhol), é uma obra provocativa que não se encerra nos interesses do país vizinho. Muito pelo contrário. Mostra quão envolvidos estão atores brasileiros nesses projetos, não se furtando a nomeá-los nem a detalhar as consequências de grande escala nas áreas de exploração madeireira, petróleo, mineração, energia hidrelétrica, agricultura e transportes.
Depois de dois intensos meses de trabalho, os autores conseguiram compilar em 162 páginas o que empreiteiros, bancos e governos querem omitir da sociedade quando se abordam as consequências de arrojados projetos de infraestrutura que atravessarão a Amazônia peruana. Hoje, toda essa informação está dispersa em empresas, administrações locais e nacionais, mas agora pode ser compreendida através da interpretação crítica dos autores. “A informação é inacreditavelmente contraditória de fonte para fonte e de mês a mês. Na verdade, ela só pode ser reunida por equipes com muito conhecimento da realidade e da operação governamental, com contatos pessoais nos ministérios e após muito trabalho para extrair-la da internet, dos relatórios, declarações nos jornais e publicações”, explicou Marc Dourojeanni.
Por mais que os planos brasileiros deixem a dever em diversos aspectos, o Peru sequer tem um planejamento de desenvolvimento nacional, nem garante a seus cidadãos acesso às informações dos empreendimentos que apoia. “É impossível para um cidadão comum entender o que se passa na Amazônia peruana. No Brasil pelo menos programas como o “Avança Brasil” e o próprio Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) podem ser lidos em um só documento amplamente divulgado. No Peru isso não existe”, revela Marc.
Rumo ao retrocesso
Nesta década em que a ousadia dos governos deveria estar direcionada à implantação de projetos alternativos de geração de energia, manejo sustentável, pagamento por serviços ambientais e incremento de esforços para diminuir as emissões oriundas de desmatamento em nações como o Peru, o país resolveu apostar nos velhos modelos.
Entre 2009 e 2021 o Peru pretende constuir 52 centrais hidrelétricas na região amazônica (24.500MW). Também tem planos para a concessão de 53 lotes para exploração petrolífera e outros que cubrirão 70% da área de floresta, fora oleodutos e gasodutos. Terá ao final da década mais de 24 mil direitos minerários titulados, sendo outros 7 mil já em tramitação na Amazônia, além de quase 5 mil quilômetros de estradas recuperadas, incluindo 880 km de novas vias, 2 mil km de ferrovias, 4.213 km de hidrovias e 483.581 hectares de plantações novas para biocombustíveis. O Peru quer ainda triplicar sua área de floresta concedida a exploração privada, o que se somará à altíssima taxa de desmatamento que ocorre ilegalmente no país.
Os autores reconhecem que a região amazônica precisa de investimentos na área de infra-estrutura, mas duvidam da necessidade de tantas obras ao mesmo tempo em apenas uma década, questionam a viabilidade econômica e social desse pacote e se indagam por que ainda não foi feito estudo de impacto ambiental para tudo isso. Além do mais, eles estimam que se tudo for realizado, os custos podem chegar à casa dos 80 bilhões de dólares que, financiados com recursos externos em sua grande parte, poderiam provocar um endividamento público e privado sem precedentes.
Projeções trágicas
O desmatamento e a degradação florestal na Amazônia peruana, consequentes da abertura de estradas, exploração madeireira e petrolífera, poderão atingir 91% da área de floresta num cenário mais pessimista, que, entretanto, tem grandes chances de se concretizar. Os autores também discorrem sobre a perda das funções econômicas e ecológicas dessas matas, como capacidade de fixação de carbono, conservação da biodiversidade e saúde do ciclo hidrológico – aspectos que se não forem levados em conta, transformarão os empreendimentos em desastres para o país.
As áreas protegidas serão fortemente pressionadas e invadidas. As emissões de gás carbônico da Amazônia peruana aumentariam em grandes proporções, colocando o país em situação incômoda diante de compromissos internacionais. Doenças, ondas migratórias, enchentes e secas severas, crescimento desordenado das periferias, grilagem de terras, violência, pressão sobre populações indígenas isoladas e ribeirinhas, são algumas das inúmeras consequências sociais não devidamente contabilizados no pacote de projetos e que, em muito, superam as vantagens sociais anunciadas.
Interesse brasileiro
Os autores atribuem ao governo brasileiro e suas empresas os maiores interesses de grande parte das intervenções no Peru, a fim de que o país aumente sua hegemonia na América do Sul, atendendo as necessidades de escoamento de produtos pelo Pacífico e venda de energia hidrelétrica de usinas peruanas para o Brasil. Os investimentos serão benéficos, é claro, para as empreiteiras e prestadoras de serviços, para o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), além de estimularem agricultores e garimpeiros da Amazônia brasileira a cruzar a fronteira. Sem falar nas entidades financeiras peruanas e nos políticos que sempre ganham com obras megalomaníacas.
Ainda que nem tudo seja cumprido à risca, nunca na história peruana se projetou tantas obras de infra-estrutura nem houve tantas iniciativas de exploração de recursos naturais em apenas dez anos. Qualquer semelhança com os empreendimentos brasileiros para a Amazônia não são mera coincidência.
Em diversas passagens, o leitor tem a sensação de estar lendo um livro sobre a Amazônia brasileira. Marc vê também muitas semelhanças, mas ressalva que a peruana é mais complexa. “O padrão de ocupação pode ser drasticamente diferente, com minifúndios no Peru e preponderância do latifúndio pecuário no Brasil. E gerando problemas e conflitos como o narcotráfico e o terrorismo ou guerrilha. A população andina peruana sempre foi muito organizada e politicamente combativa, o que é positivo em muitos aspectos, mas agrava os conflitos”, explica Marc. Enquanto a Amazônia brasileira recebeu nos anos da ditatura militar incentivos para sua ocupação, com abertura de estradas e nascimento de cidades, o Peru esteve até pouco tempo de costas para sua floresta e ainda hoje vê a região como um território a ser explorado ou vendido, de acordo com Marc.
A saída, para os autores, reside numa interrupção estratégica das intervenções planejadas para que se possam incluir a participação social e o cumprimento da legislação no que se refere à mensuração dos impactos, inclusive ambientais. “Se não for assim, somos realistas e conscientes de que as recomendações deste trabalho não encontrarão muito eco no governo atual”, diz Marc. Entre as sugestões dos autores estão o funcionamento de um cadastro de passivos ambientais para a Amazônia, para registrar e quantificar os danos ambientais acumulados que mais podem influenciar negativamente o futuro da Amazônia, a ser elaborado em escala municipal, regional ou para toda a Amazônia.
Mais do que abrir os olhos da população, para que não assista inerte à destruição da Amazônia peruana em apenas dez anos, os autores quiseram chamar a atenção dos próprios governantes, muitos dos quais sem noção clara do conjunto e das interações de tantas obras propostas, esperando deles alguma atitude. “O Brasil também tem muito a perder de uma futura Amazônia peruana sem matas, com os solos arrasados, águas contaminadas e socialmente mais instável que agora. A Amazônia é uma só. Este trabalho é, portanto, um convite à reflexão e à ação”, resume Marc.
(Por Andreia Fanzeres, O Eco, 27/01/2010)