Na última semana, o decreto de reestruturação que melhora o desempenho da Fundação Nacional do Índio (Funai) provocou muita polêmica. A principal reclamação indígena, a falta de processo amplo de consulta aos índios, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT, permanece o principal desafio à sua implementação.
A edição do Decreto nº 7.056, de 28 de dezembro de 2009, que aprova o novo estatuto e quadro de cargos em comissão da Funai (Fundação Nacional do Índio) suscitou na última semana inúmeros protestos e gerou conflitos entre os próprios indígenas. A principal reclamação reside no fato de a proposta não ter sido amplamente discutida e os povos indígenas não terem sido consultados, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT.
A insatisfação com a falta de um amplo processo de discussão para validar a reestruturação a Funai não altera o fato de que ela é mais do que necessária, para que o órgão possa atender as demandas atuais dos povos indígenas. A idéia de readequar a estrutura do órgão é antiga, e constou do plano de vários dos ex-presidentes do órgão, que, entretanto, não conseguiram dar concretude às propostas. Leia o decreto presidencial na íntegra.
De fato, a obrigação de consultar previamente povos indígenas sobre medidas legislativas capazes de afetá-los está prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, mas tem sido pouco aplicada no âmbito do governo federal e da própria Funai. Por essa razão, em abril de 2009, a OIT elaborou parecer acusando o Brasil de descumprir a obrigação de consulta prévia no processo de aprovação da Lei nº 11.284 de Gestão de Florestas Públicas (Leia aqui).
Os casos mais graves de não aplicação do direito de consulta ocorrem no processo de licenciamento de obras de infraestrutura que impactam Terras Indígenas. Recentemente a Funai negligenciou o dispositivo ao aprovar parecer sobre a Hidrelétrica de Belo Monte como também deu sinal verde para a licença da BR-319, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), por meio de ofício enviado ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) abrindo mão das consultas prévias com os povos afetados.
Proposta de reestruturação foi anunciada em 2007
A proposta de reestruturação foi apresentada pelo presidente da Funai, Márcio Meira, na 3ª Reunião Ordinária da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), realizada em outubro de 2007, em Brasília. Consta da ação 901F do Plano Plurianual do governo federal 2008-2011, que tem por finalidade: "implantar novo desenho institucional, no sentido de tornar a atuação da Fundação compatível ao cumprimento de suas atribuições constitucionais". Com a publicação do decreto, a Funai cumpre com parte do resultado esperado dessa ação: "nova estrutura publicada, plano de cargos e salários implementado, concurso realizado e novos servidores empossados e estrutura física remodelada". Os passos dessa ação foram levados à CNPI durante os últimos dois anos. Leia carta dos Guarani Mbya, que têm representantes na CNPI e se manifestam sobre a reestruturação.
Ocorre que a reestruturação da Funai afetará núcleos corporativos de servidores do órgão que, ameaçados, manipulam informações contrárias às mudanças. Faltou melhor divulgação por parte da direção da Funai sobre a nova estrutura e a criação de mecanismo efetivo de participação indígena na sua implementação. O decreto de 28 de dezembro altera a forma como a Funai se organiza, mas ainda não definiu como será a operacionalização, a ser estabelecida por meio do novo Regulamento Interno da Funai, da criação dos Comitês Regionais, da decisão sobre a localização das Coordenações Técnicas Locais e composição do novo quadro de servidores por profissionais qualificados para atender as atuais demandas indígenas. As organizações indígenas e a Funai devem definir conjuntamente a forma de participação indígena para influenciar efetivamente estas decisões.
A ausência de um amplo debate não deve comprometer os aspectos positivos da reestruturação que abre espaço para a criação de efetivo mecanismo de participação e consulta na sua implementação.
As principais mudanças promovidas pelo Decreto nº 7.056
1- Mudança na Estrutura Organizacional: há um enxugamento das 45 administrações regionais que passam a ser 36 coordenações regionais. Os postos indígenas serão substituídos por 297 Coordenações Técnicas Locais- CTL que terão suas atividades definidas em regimento interno, transferindo maior capacidade técnica para assessorar a gestão das terras indígenas. É importante ressaltar que esta mudança busca enfrentar o desafio de reverter a tendência histórica de multiplicar administrações regionais como forma de assegurar assistencialismo, empregos e atender a interesses de grupos. Estas ações clientelistas resultam em falta de eficiência da Funai e prejudicam a autonomia indígena na gestão dos seus territórios.
2- Mudanças na gestão:
2A - mudança na direção: a Funai passa a ser dirigida por uma Diretoria Colegiada composta por três diretores e pelo presidente que a presidirá. Todos são nomeados pelo Presidente da República por indicação do ministro da Justiça. A estrutura tem três diretorias: Diretoria de Administração e Gestão, Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável e Diretoria de Proteção Territorial. Falta definir como será realizado o controle externo dos povos indígenas.
2B - gestão participativa - a nova gestão passa a ser participativa, no sentido de que a Funai criará Comitês Regionais (membros nomeados e empossados pelo presidente do órgão) compostos por coordenadores regionais, assistente técnicos, chefes de divisão e de serviços e representantes indígenas locais, com competência para colaborar na formulação das políticas públicas de proteção e promoção territorial dos Povos Indígenas, colaborar na elaboração do planejamento anual para a região, propor articulação da Coordenação Regional com outros órgãos federais, estaduais e municipais entre outras.
Este é um dos pontos fortes da reestruturação que precisa ser melhor detalhado e discutido com as organizações indígenas. A implementação dos mecanismos de participação e controle social indígena, como os Comitês Regionais, são fundamentais para que as mudanças na Funai realmente ocorram.
2C - gestão descentralizada - há um esforço de descentralização de gestão. Enquanto a formulação da política e de diretrizes será feita pelo Presidente com a Diretoria Colegiada, o forte da execução das ações está nas Coordenações Regionais. Haverá transferência de capacidade técnica para mais perto das terras indígenas, possibilitando que a elaboração das demandas e a execução das ações sejam realizadas com mais eficiência.
À Diretoria Colegiada competirá estabelecer diretrizes e estratégias da Funai; acompanhar e avaliar a execução dos planos e ações das diretorias e Comitês Regionais, bem como determinar as medidas de ajustes necessárias ao cumprimento dos seus objetivos, entre outras atribuições.
Às Coordenações Regionais competirá realizar a supervisão técnica e administrativa das coordenações técnicas locais e de outros mecanismos de gestão localizados em suas áreas de jurisdição, bem como exercer a representação política e social do presidente da Funai; e coordenar, controlar, acompanhar e executar as atividades relativas à proteção territorial e promoção dos direitos socioculturais das populações indígenas; apoiar a implementação de políticas de monitoramento territorial nas terras indígenas; executar ações de preservação ao meio ambiente; e executar ações de administração de pessoal, material, patrimônio, finanças, contabilidade e serviços gerais, entre outras.
Aos Comitês Regionais, compostos também por representantes indígenas, competirá colaborar na formulação das políticas públicas de proteção e promoção territorial dos Povos Indígenas; propor ações de articulação com os outros órgãos dos governos estaduais e municipais e organizações não-governamentais; colaborar na elaboração do planejamento anual para a região; e apreciar o relatório anual e a prestação de contas da Coordenação Regional.
3- Mudança nas finalidades da Funai: a principal alteração diz respeito a extinção da finalidade de exercer a tutela dos índios conforme constava no decreto anterior, de 2005. Isto não significa a extinção das obrigações da Funai para com os povos indígenas. Mas modifica sua forma de atuar. A Funai não pode falar e decidir em nome dos povos indígenas desde a Constituição de 1988. Ela deve, sim, apoiar e assistir aos povos indígenas a exercer os seus direitos e cumprir as suas obrigações, respeitando as diferenças culturais e os direitos originários. A Funai vai continuar a demarcar as terras indígenas, promover o desenvolvimento sustentável, exercer o poder de polícia, exercer assistência jurídica, acompanhar ações de educação e saúde.
(ISA, 19/01/2010)