Diante de uma tragédia como a haitiana, qual deveria ser o papel da imprensa? Observar ou participar? Assumir o papel de provedor de informações para que outros tomem decisões, ou considerar-se parte do desafio e transformar-se numa plataforma onde a população possa dizer o que pensa e quer?
Estas perguntas estão na cabeça dos jornalistas há muito tempo. Não é preciso ir voltar muito no tempo. Há semanas, a enchente de São Luiz do Paraitinga colocou a população desta cidade paulista diante de um dilema parecido com o de Porto Príncipe, só que em escala muito menor.
A imprensa funciona bem quando se trata de mostrar o desespero dos sobreviventes, o drama dos feridos e o show da ajuda. Mas tragédias como a do Haiti tem um componente muito mais dramático que a imprensa geralmente ignora porque ele só aparece depois que os enviados especiais vão embora e que as equipes de socorro também já retornaram à suas bases.
A reconstituição do futuro de uma cidade ou um país atingidos por uma grande tragédia pode demorar anos, enquanto o socorro aos sobreviventes e o enterro das vítimas duram semanas. No primeiro momento a imprensa está presente, mas depois são os sobreviventes que tem que assumir sozinhos o desafio de reconstituir a esperança, o que convenhamos é uma tarefa sobre-humana, para quem perdeu tudo e tem que refazer primeiro a sua própria vida.
É aí que nós da imprensa falhamos porque ficamos pulando de tragédia em tragédia sem ter tempo para participar da parte mais difícil de uma tragédia. Socorrer sobreviventes e enterrar mortos é muito difícil, mas poucos se arriscam a pensar no que será o Haiti daqui por diante.
O país virou um monte de escombros, as estruturas mais elementares de um Estado ruíram, a economia, que já era precária, foi destroçada e vai ficar assim mesmo depois da cicatrização das feridas dos sobreviventes do terremoto do dia 12.
Até agora, a imprensa podia refugiar-se na alegação de que seu papel era o de dar informações para que governantes e cidadãos tomassem decisões. A oferta de informações era reduzida e a imprensa se dizia neutra para escapar da acusação de manipulação noticiosa.
Hoje a situação mudou porque temos excesso de oferta de notícias e a diversidade de versões tende a reduzir a possibilidade de ditadura informativa. Então não temos mais porque assumir uma postura clínica diante de tragédias como a haitiana.
É claro que a imprensa não tem como missão oferecer receitas políticas ou econômicas, mas ela tem uma responsabilidade muito maior: servir de canal de expressão para os sobreviventes e produzir informações que permitam a públicos muito distantes do palco da tragédia entender o que sentem e o que pensam povos como o haitiano.
Compreender o que se passa hoje na cabeça de um haitiano, seus sonhos e desilusões, suas angustias e expectativas é uma tarefa que a imprensa pode e deve desenvolver enquanto os especialistas buscam soluções econômicas, sociais e assistenciais para o país. Entender é o oposto de julgar o Haiti a partir de nossas percepções e de nossa cultura.
Aprendi isto ao cobrir a crise iraniana em 1979, quando a imprensa mundial era unânime em classificar como desvairada a idéia dos ayatollás de que religião e política eram a mesma coisa. A partir daí se criou a idéia, presente na maioria das reportagens feitas na época, de que os movimentos islâmicos negavam a racionalidade e o bom senso.
A imprensa ocidental tem uma enorme dificuldade para entender culturas diferentes. Tende a julgar tudo e todos pela sua própria visão evitando o complexo trabalho de compreender a diversidade. A maioria dos jornalistas ingleses quando chega à África, a primeira coisa que pergunta é qual é a tribu boa e qual a ruim. Para eles, as crises africanas se resumem a isto, não importa o país.
Entender o haitiano não significa mostrar a prática do vudu, mas explicar porque ele é tão importante na vida das pessoas no país. Entender o haitiano é desmistificar preconceitos como o expressado pelo pastor norte-americano Pat Paterson que num programa de televisão , atribuiu o terromoto no Haiti a uma vingança divina porque os líderes da luta pela independência do país teriam feito um “pacto com o diabo” para acabar com a dominação colonial francesa, em 1804.
(Por Carlos Castilho, Observatório da Imprensa, 16/01/2010)