Perdas e dramas sociais nas barragens – A 385 km da cidade de Belém, existe uma das maiores obras feitas pelo homem em prol do desenvolvimento: a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (UHT). Com um reservatório de mais de 3000km², com 1.321m de comprimento, 77m de altura e uma média de 8.000MW de potência, a Usina é um marco na geração de energia elétrica para a história nacional. Marco ainda maior para aqueles que tiveram suas casas, suas terras e suas vidas inundadas pelo sofrimento e pela dor, como mostra a tese de doutorado da professora Sônia Maria Simões Barbosa Magalhães Santos, da Universidade Federal do Pará.
Intitulada “Lamento e dor: uma análise sócio-antropológica do deslocamento compulsório provocado pela construção de barragens”, a tese – defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, sob orientação dos professores Jean Hébette e Pierre Teisserenc, é inovadora ao analisar as perdas e o drama social das populações que tiveram de ser removidas de seus locais de habitação para a construção das barreiras artificiais feitas para a retenção de água, mais conhecidas como as “barragens”. Na sociologia, existem muitos trabalhos que citam as perdas causadas por esse procedimento, mas nunca foram analisadas como um processo social ancorado no sofrimento, como o foi para o caso de Tucuruí.
Sem nenhum poder de deliberação, as populações que viviam às proximidades do Rio Tocantins, onde se encontra o município de Tucuruí, foram obrigadas a se deslocarem para novas terras no final da década de 70 e no início da década de 80, quando a primeira etapa da construção da hidrelétrica, juntamente com o enchimento do lago, foi finalizada (1984). Encabeçada pela empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte), o procedimento de indenização e o deslocamento dos moradores das áreas inundadas acabaram se tornando um processo cheio de falhas e, até hoje, inacabado.
Eventos transformados em ‘fóruns de lamento’
Não há um número preciso de pessoas atingidas pela construção da barragem de Tucuruí. Para a professora Sônia Magalhães, essa incerteza é resultado de uma disputa política. “De um lado, temos a Eletronorte, que, a todo momento, faz questão de diminuir o número de atingidos para diminuir o custo e a representação das consequências negativas do empreendimento. Do outro lado, temos as populações locais lutando pelo reconhecimento das várias formas de sofrimento que a barragem de Tucuruí provocou e que a empresa não leva em conta”, afirma a antropóloga.
Um bom exemplo da deficiência de estudos da empresa em questão é a desconsideração para com os atingidos localizados na jusante da área inundada, onde a pesquisadora afirma que não há estatísticas nem dados que analisem os efeitos sofridos por essas populações, sendo, portanto, “esquecidas” no processo de reassentamento e indenização. Foi somente em 2003, no contexto da segunda etapa de construção da UHT, que a Eletronorte reconheceu, oficialmente, como “área atingida” do empreendimento os seguintes municípios situados na jusante da barragem: Baião, Mocajuba, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru e Cametá.
Esse reconhecimento deve muito aos movimentos sociais alavancados no contexto da construção da Usina de Tucuruí, os quais foram mediadores e objetos de estudo fundamentais para a pesquisa da antropóloga Sônia Magalhães. Entre os movimentos, a pesquisadora analisa o Movimento de Expropriados de Tucuruí e o Movimento Nacional de Atingidos por Barragens (MAB), os quais foram protagonistas da maioria dos eventos na arena pública (assembleias, reuniões, encontros) que mobilizou grande número de pessoas em uma ritualização coletiva de denúncias e reivindicações.
Para a socióloga, os eventos públicos podem ser considerados grandes “fóruns de lamento”, pois, além das reivindicações, são espaços de recordação e enunciação das perdas ocorridas pelo deslocamento compulsório. São modificações imponderáveis do ponto de vista sociológico, por que perpassam várias questões, como a da saúde (proliferação de mosquitos), a econômica (empobrecimento das comunidades pelo declínio da pesca e pelo pequeno valor das indenizações), a cultural (a UHT afetou o cotidiano de povos indígenas e tradicionais), a ambiental (danos à vegetação e à biodiversidade do local), entre muitas outras consequências.
“São processos que desestruturam a noção de espaço, de tempo e da própria organização social, processos estes que, em Tucuruí, após mais de 30 anos, se tornam irreversíveis”, declara Sônia Magalhães.
Audiências públicas não garantem participação popular
Atualmente, a região amazônica vive a iminência de mais uma construção em seu território, mais precisamente sobre o Rio Xingu: a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. As audiências públicas sobre os possíveis impactos ambientais da nova Usina, ocorridas no mês de setembro deste ano, foram cercadas de problemas, pois não garantiram condições amplas de participação da população e não favoreceram, de forma clara, os argumentos do governo sobre os motivos que justificam o empreendimento.
A pesquisadora Sônia Magalhães coordenou um Painel de Especialistas para analisar o Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMA) e o Estudo de Impactos Ambientais (EIA) da Usina de Belo Monte, documentos estes que, a cada questionamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), são atualizados com mais volumes (têm-se, hoje, uma média de 30 mil páginas). É válido ressaltar que nenhum projeto de hidrelétrica pode ser licitado sem antes ter um parecer de viabilidade ambiental aprovado pelo IBAMA.
Após a leitura feita pela antropóloga e por outros pesquisadores de diversas áreas, foi diagnosticado um verdadeiro desastre econômico, social e ambiental caso a construção da Usina seja iniciada, pois o atual projeto e a condução de sua licença estão em desacordo com as recomendações mundiais feitas pelos Princípios do Equador, pela Comissão Mundial de Barragens (CMB) e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Sônia Magalhães ressalta que é paradigmática, do ponto de vista social e ambiental, a área chamada Volta Grande do Xingu.
Nessa área, pretende-se reduzir a vazão de mais de 100 km do Rio Xingu, promovendo, também, a redução do lençol freático. “Será um grande problema, porque, nessa área, há três grupos indígenas diferentes, com línguas e costumes diferentes, a qual será submetida a uma escassez hídrica no coração da Amazônia, além, é claro, a perdas de florestas e da biodiversidade, principalmente, da ictiofauna”, afirma a professora. Se o cenário foi de lamento e dor em Tucuruí; em Belo Monte, não será diferente, pois os processos agregam violações de direito e desastres ambientais que escapam do controle democrático da população.
(Por Igor de Souza, Jornal da Universidade Federal do Pará, EcoDebate, 15/01/2010)