A frente fria que subiu pelo Oceano Atlântico costeando o continente no final de 2009 causou morte, destruição e expôs novamente a superficialidade das coberturas jornalísticas quando a questão envolve clima e desastres naturais. Os questionamentos são os mais rasos possíveis e apelativos ao explorar o drama pessoal com doses do oportunismo que move os medíocres.
O drama deve ser mostrado. Evidente que sim, pois sensibilizar-se diante da tragédia faz parte do sentimento humano. Mas também há a responsabilidade inerente do jornalismo em apresentar o cenário com todas suas variantes – e isto tem sido, comodamente, deixado de lado.
No caso de Angra dos Reis, na tragédia que se abateu sobre a Pousada Sankay e que vitimou parte de seus hóspedes, até o momento algumas questões não foram sequer observadas pelas coberturas jornalísticas. Entre elas as autorizações e laudos para construção em área de encosta – e portanto de alto risco – e edificação em faixa de marinha.
A faixa de marinha é um espaço entre o mar e a terra de domínio exclusivo da União. São 33 metros a contar da linha do mar e, em alguns casos, acrescidos de mais 100 metros de zona de segurança. Para se construir dentro desta área é preciso permissão à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), órgão ligado ao Ministério do Desenvolvimento.
Falta ainda saber quais serão as providências, inclusive do Ministério Público Federal, quanto às análises das autorizações, se essas levaram em consideração as leis que regem o uso do solo, os laudos periciais sobre nível de risco em outras edificações em situação semelhante. Já que praticamente em todo o litoral brasileiro existem ocupações de encostas e em área de marinha, inclusive por grandes empreendimentos imobiliários e estabelecimentos comerciais de alto padrão.
Tempo bom, tempo ruim
Em tempos de alterações nos padrões climáticos do planeta, outros questionamentos ainda estão fora das pautas. Um deles é de fundamental importância: como o degelo da Antártica tem amplificado os efeitos das frentes frias? Essas massas de ar gelado que migram rumo às áreas continentais subtropicais estão influenciadas por uma nova condição climática?
Até o momento nenhum cientista foi ouvido com maior profundidade a esse respeito, pois a rotina do repórter se resume a entrevistar um meteorologista ou climatologista para saber como estará o tempo nas próximas horas ou dias. Nunca alcança um patamar superior a isto. Resta saber se por displicência profissional, falta de conhecimento na abordagem do tema ou pura repetição da superficialidade que contaminou o jornalismo.
Em todo período de verão há problemas de deslizamentos e inundações em áreas habitadas. Mas no jornalismo diário isto parece sempre novidade. A falta de memória é consequência do imediatismo que move o noticiário. Em 2000 houve um dos piores transbordamentos do Rio Paraíba do Sul, que afetou diversas cidades do Vale do Paraíba paulista, fluminense e mineiro. Foi quanto Campos do Jordão veio, literalmente, abaixo – num fenômeno natural muito semelhante ao de Angra dos Reis.
Entretanto, essa recusa por parte dos jornalistas em vincular os fatos e estabelecer novas visões sobre o uso e a ocupação do solo deixou de ser apenas irritante e ingressou na esfera da irresponsabilidade.
Vale quanto pesa
Talvez a afobação em informar, municiado por uma boa dose de morbidez, o peso editorial sempre pende para o número de vítimas fatais. Isto assume contornos fantásticos se a tragédia ocorreu num reduto de classe média ou alta. Sem tirar o mérito da importância do evento de Angra dos Reis, mas novamente a cobertura deste começo de 2010 apresente essa conduta, um tanto quanto excludente e imbecializada.
O melhor exemplo vem da bucólica e histórica de São Luiz do Paraitinga, no médio Vale do Paraíba paulista, detentora do maior acervo arquitetônico colonial do estado de São Paulo e de um carnaval disputadíssimo. O castigo das chuvas foi impiedoso com seus casarios e igrejas. Dezenas de construções com mais de dois séculos de existência foram aniquiladas pelas cheias do Rio Paraitinga, num evento sem precedentes na história do lugar.
Um drama social imenso, com pelo menos 3 mil desabrigados e parte da história do Brasil colonial cafeeiro destruído. Entretanto, com uma morte confirmada – algo que não coloca a história no ranking das prioridades.
Por mais bizarro que possa parecer, na visão do jornalismo de tragédia a destruição de uma cidade inteira não compete com o soterramento de uma pousada de alto padrão. O que vale é o número de mortes e o status social dessas vítimas. E é assim que as coisas funcionam numa Redação de jornal.
A cobertura do desastre de São Luiz esteve e está muito aquém do que se espera da boa prática jornalística. Só não ficou no limbo por um imenso lance de sorte de dois moradores, que conseguiram gravar as imagens do desabamento da bicentenária igreja de São Luiz de Tolosa. Esse foi o ponto sensacional que os jornais procuravam.
No caso de São Luiz, ainda existe um outro aspecto a ser investigado – logicamente se houver o mínimo de sensibilidade – além dos efeitos da água sobre as paredes de taipa de pilão e o volume de chuvas. Trata-se do impacto do carnaval de rua, que abarrotava a cidade por multidão de foliões, causando uma vibração imensa sobre as fragilizadas estruturas dos casarões coloniais.
Causas reais
Resta saber se demorará ainda muito para que a imprensa venha a compreender a interconexão e correlação entre os diversos casos. Já se passou da hora de tratar os assuntos como se fossem fatos isolados. Na maioria das vezes o que se vê é uma sucessão de ocorrências com íntima conexão.
Tratar das chuvas intensas em Angra e em São Luiz é ficar na superfície da questão, já que sempre choverá no verão. Sem haverá pontos em comum quanto esse tipo de evento ocorrer simultaneamente. Mas deixar de buscar as reais causas desses desastres, sejam elas provocadas por ações naturais ou antrópicas, é boicotar não só a prática jornalística, mas a própria sociedade.
(Por Júlio Ottoboni, O Observatório da Imprensa, 05/1/2010)