“Na construção dos processos desenvolvimentistas, nós projetamos, sobre o Estado nacional, algumas perspectivas desconsiderando que existem, neste mesmo espaço geográfico, outras temporalidades, ou seja, que existem outros grupos que também convivem nesse mesmo território e que entendem este espaço de forma diferente”. A afirmação é da doutora em Educação Iara Tatiana Bonin. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone, ela fala sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, em especial, sobre os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, que têm vivido momentos de verdadeiro terrorismo.
Só neste mês, desapareceram com um professor e mataram outro, ambos haviam ajudado cerca de 250 Guarani-Kaiowá a retomar parte de sua terra tradicional. Além disso, fazendeiros aparecem encapuzados dando tiros em direção aos acampamentos indígenas com o intuito de fazerem recuar na sua luta pelas terras tradicionais. “Tanto no Mato Grosso do Sul quanto no Brasil, de modo geral, as áreas pretendidas pelos povos indígenas são áreas onde há concentração do agronegócio, isto explica o fato de as demarcações não acontecerem, e evidencia que são áreas tradicionais indígenas mesmo, pois, se não fossem, os fazendeiros seriam os primeiros interessados em que os estudos de identificação acontecessem”, explica Iara.
Iara Tatiana Bonin é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestre em Educação pela Universidade de Brasília. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizou o doutorado também em Educação. Atualmente, é professora adjunta da Universidade Luterana do Brasil -Ulbra. Por sete anos, atuou no Conselho Indígena de Roraima; e, por onze, no Conselho Indigenista Missionário - CIMI. É casada com o coordenador do CIMI-RS, Roberto Liebgott.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A senhora associa os acontecimentos de violência contínua sofridos pelos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul aos flagelos que sofriam os negros nos EUA, patrocinados pela Ku Klux Klan. Os métodos são os mesmos? Como a violência se manifesta?
Iara Bonin – Não que os métodos sejam os mesmos. A associação tem a ver com os estudos de Michel Foucault que falam num tipo de prática de racismo que se dá quando o Estado autoriza a morte de alguns cidadãos para proteger outros sujeitos. Nós podemos observar, não só em relação aos Guarani-Kaiowá, mas com os povos indígenas de modo geral, que em função de um projeto de desenvolvimento e crescimento econômico que está baseado em recursos do grande capital, esses povos que são considerados entraves acabam sofrendo uma pressão muito grande. Tanto no Mato Grosso do Sul quanto no Brasil, de modo geral, as áreas pretendidas pelos povos indígenas são áreas onde há concentração do agronegócio, isto explica o fato de as demarcações não acontecerem, e evidencia que são áreas tradicionais indígenas mesmo, pois, se não fossem, os fazendeiros seriam os primeiros interessados em que os estudos de identificação acontecessem. A associação tem a ver com um conjunto de condições para que esses povos sejam considerados desnecessários naquela região. Isso constitui um tipo de racismo que é alimentado pela política, mas se manifesta nesse tipo de ação, especialmente na omissão. Eles sofrem, por exemplo, ameaças contínuas de pessoas armadas que invadem os acampamentos indígenas, e o poder público não age. A gente votou pela liberação das armas, então como é que apenas algumas pessoas podem usar armas? Como se pode criar milícias contra alguns povos que estão lutando pelo seu direito de viver? Então, a associação com o racismo tem a ver com isso, não com o racismo do senso comum. Tem a ver com uma política que, no limite, leva ao genocídio desses cidadãos.
Você afirma que, no estado do Mato Grosso do Sul, os Guarani-Kaiowá são vistos como ‘ervas daninhas’ pelos senhores dos ‘jardins do latifúndio’. O que os fazendeiros propõem, afinal, em relação aos povos indígenas na região?
Iara Bonin – O que acontece em relação aos povos indígenas é que as pessoas querem vê-los o mais distante possível. Na verdade, na construção dos processos desenvolvimentistas, nós projetamos, sobre o Estado nacional, algumas perspectivas, desconsiderando que existem, neste mesmo espaço geográfico, outras temporalidades, ou seja, que existem outros grupos que também convivem nesse mesmo território e que entendem este espaço de forma diferente, assim como o modo de existência nesse lugar. Mas nós, como sociedade ocidental, somos maioria e acreditamos que nosso modo de propor o desenvolvimento é o único, é o mais correto, é a saída. Neste caso, vamos mapeando todas as áreas e definindo o que pode e o que não pode existir. A gente sempre acha que o lugar dos indígenas não é aqui, que eles deviam estar no meio da mata. As propostas, de modo geral, são de retirada deles, de área única, de colocar sobre controle as formas de circulação que eles têm, porque no caso dos Guarani, além das terras em que vivem, há a concepção de que eles podem circular num território mais amplo.
Talvez não seja o extermínio propriamente dito, com aquelas artimanhas utilizadas na década de 1970, por exemplo, de distribuir açúcar com arsênico para os índios, mas, de qualquer forma, quando se confina uma população imensa num território minúsculo, de certo modo, estamos promovendo também a morte dessas pessoas pela falta de condições mínimas de sobrevivência cultural. É sempre bom lembrar que a Constituição Brasileira determina que o Estado proteja os bens indígenas também, que incluem não só os bens materiais, mas a cultura, as crenças e as formas de ocupar o território. A própria violência interna – como suicídios e homicídios – também tem a ver com o fato de que eles estão vivendo numa região em que não podem mais restituir suas formas de relacionamento social.
A questão central do conflito é mesmo a terra?
Iara Bonin – Na opinião do CIMI, que é a entidade com a qual eu colaboro, é a questão fundiária que está por trás de toda essa discussão, porque são as terras pretendidas pelos povos indígenas e que não são demarcadas e, portanto, o estopim de todo o conflito. Na medida em que eles aguardam as demarcações em acampamentos em beira de estrada, ninguém se importa que eles fiquem lá 30 anos esperando. No momento em que eles tomam uma atitude de retomada para acelerar o processo demarcatório – que a própria Constituição determinou que deveria ser feito num período curto – e retomam uma parte desse território, que deveria estar em estudo, mas não está, porque o próprio Estado cria uma série de impedimentos para que isso aconteça, aí, portanto, o conflito se estabelece. Portanto, o conflito é fundiário, sim!
Por que os assassinatos de camponeses na luta pela terra ganham repercussão maior que o assassinato de indígenas?
Iara Bonin – Boa pergunta! Eu acho que nós somos muito governados pelas estatísticas e pelos índices e números. Então, provavelmente, tem a ver com o fato de que a população indígena brasileira é minoritária, em termos quantitativos. Eles representam 0,5% no máximo da população brasileira. É como se eles fossem um número irrisório. Também tem a ver com as representações que nós mesmos produzimos sobre os povos indígenas. Consideramos que eles são povos do passado, achamos que eles têm práticas e culturas que não se adaptam a esse modelo ou esse tempo que a gente vive. Isso tudo cria na nossa cabeça, enquanto sociedade, uma ideia de que eles estão mesmo fadados ao desaparecimento. Vários fatores, como esse, poderiam ser pensados como resposta para o descaso. O número de assassinatos que ocorrem anualmente contra ou entre os Guarani-Kaiowá é muito alto se pensarmos de forma percentual. Em relação ao percentual total da população brasileira, seria um índice muito alarmante, comparável à violência em cidades como São Paulo.
Quais são as forças políticas que defendem os povos Guarani-Kaiowá hoje?
Iara Bonin – É inegável que os Guarani-Kaiowá podem contar com o apoio e com a sensibilidade de muitas pessoas, mas, particularmente, de movimentos populares e sociais. O próprio CIMI que está lá, as igrejas que fazem um trabalho vinculado à luta política. Há também as organizações não governamentais que atuam com direitos indígenas também. Em alguns casos, podemos falar de órgãos públicos que atuam ao lado dos povos indígenas, como o Ministério Público Federal. Em cada região, isso vai funcionar de um jeito diferente e também tem a ver com as pessoas e forças em jogo. Ainda assim, é uma luta tremendamente desigual, assim como são todas as lutas em relação à terra no Brasil inteiro. Se você pensar quais são as forças contrárias aos interesses de demarcação de terras indígenas no MS ou aos interesses da própria continuidade da existência dos próprios Guarani-Kaiowá na região, teremos um jogo muito desigual. Isso pode ser visto nas próprias escolhas que têm sido feitas pelo governo, por exemplo, a opção pelo PAC que conduz a esse desequilíbrio nas forças, pois, na medida em que existe um projeto desenvolvimentista de grandes obras, vinculado a um modelo econômico que então acaba passando por cima de questões sociais, é óbvio que os povos indígenas vão sofrer. Tudo o que for pedra neste caminho tem que ser removido, é desta forma que estão agindo.
Como você avalia a ação do Estado brasileiro relacionado à demarcação dos territórios indígenas no Mato Grosso do Sul?
Iara Bonin – O governo brasileiro, nos últimos anos, tem sido bastante moroso – para não dizer omisso em alguns casos – em assegurar o direito dos povos indígenas em relação à demarcação. De uma forma geral esses procedimentos se dão em áreas em que o conflito é um pouco mais latente ocorre de forma mais acelerada. Também tem ocorrido, como no caso de Raposa Serra do Sol, 30 anos depois a demarcação. Então, não dá para dizer que não ocorre a demarcação em área de conflito, mas acontece quando o problema se estende muito. As demarcações estão sempre no final da lista das prioridades. No caso deste governo, ao longo deste ano, podemos afirmar que não houve nenhum procedimento importante de demarcação de área indígena nova. Hoje, existem 943 terras indígenas, de acordo com o CIMI, mas 620 ainda não foram demarcadas. Algumas delas têm conflitos muito grandes e necessitariam um estudo urgente dos grupos técnicos para que se definissem claramente quais são os limites dessas terras tradicionais e procedesse a demarcação para que se pudessem evitar esses casos de conflitos que lá são cotidianos.
Uma criança indígena de dois anos morreu em Kurussu Ambá. Ela não foi, obviamente, assassinada. Eles fizeram uma retomada há pouco mais de 20 dias e, desde então, estão reivindicando assistência médica porque vivem numa região próxima de plantações de soja, por exemplo, e, por isso, as crianças estão adoecendo. E a Funasa está impossibilitada de levar remédios para eles, como diz o coordenador, por causa dos conflitos. Aí o Estado brasileiro reconhece, neste caso, que existe o conflito, reconhece que eles estão ameaçados, reconhece que há milícias armadas e que a Funasa está impossibilitada de levar assistência médica e, ainda assim, não tem ação eficaz para conter esse tipo de violência. Com isso, eles ficam sem medicamento, sem alimento, sem água... A retomada é, portanto, um ato corajoso desses povos que assumem uma atitude, assim como faz o MST, diante da ausência de providencias pela parte do poder público.
(IHU Online, 05/01/2010)