Nesta segunda (28/12) o presidente Lula assinou o Decreto 7.056 pelo qual reestrutura a Fundação Nacional do Índio. O decreto saiu publicado hoje (29) e estourou que nem uma bomba no meio indigenista. Ao contrário do que foi alardeado pelo atual presidente da Funai, a reestruturação se apresenta como um retrocesso ao indigenismo brasileiro, que estará fazendo 100 anos em 2010.
Em primeiro lugar, ficam extintos todos os postos indígenas do Brasil. Os postos indígenas constituem a estrutura mínima que está presente e atuante nas aldeias indígenas. Muitos deles são formados por apenas um chefe de posto, que se desdobra para manter o contato, o relacionamento, a proteção e a assistência mínima aos índios que vivem exclusivamente nas aldeias.
Os postos indígenas sempre foram a ponta do indigenismo brasileiro. São eles que dão suporte imediato às demandas mais corriqueiras e também as mais urgentes das aldeias indígenas. Quase todos os postos indígenas estavam localizados nas próprias aldeias indígenas, ou perto delas, sem interferir em sua vida cotidiana. Alguns deles já eram mais que centenares, pois, ou foram criados por Rondon, ou vêm ainda desde o Império.
Essa extinção vai dar o que falar e os índios vão sentir terrivelmente esse baque.
A estrutura da Funai-sede em Brasília sofreu algumas modificações negativas. Foi extinta a Coordenação-geral que cuidava do incentivo à produção de artesanato indígena, um dos pilares econômicos de muitos povos indígenas. Essa coordenação incentivava essa produção pela compra do artesanato por preços bastante razoáveis, se não justos, o que fazia com que o mercado para esses produtos favorecesse economicamente a produção indígena. Agora os artesãos indígenas ficaram à mercê do mercado.
Outra modificação foi a extinção da Coordenação-geral de Estudos e Pesquisas, que acumulava as funções de intermediar estudos etnológicos de antropólogos, contatando as populações indígenas para obter permissão de visitas de estudiosos, e de publicação de textos oriundos desses estudos. Agora tudo isso será feito no Museu do Índios, no Rio de Janeiro, longe do contato com os índios e do burburinho da Funai. Como a atual direção do Museu do Índio, junto com a Funai, tem segundas intenções de retirar o Museu do Índio do âmbito da Funai, o distanciamento entre pesquisas, interesses do órgão e os índios vai ficar cada vez maior.
No mais, a presidência da Funai agora acumula uma série de DAS como assessores pessoais, e alguns nomes de algumas coordenações gerais e de diretorias, foram mudadas. Nada substantivo. A criação de uma diretoria colegiada formada pelo presidente e os três diretores, com voto qualificado do presidente, é uma filigrana burocrática sem qualquer sentido digno de nota. Igualmente um certo Comitê Regional, a ser formado pelos coordenadores regionais que devem se reunir uma vez por semestre para debater seus problemas, não passa de assembleismo tolo.
Junto com a extinção dos postos indígenas, vieram extinções de diversas administrações regionais da Funai, algumas tradicionais, outras criadas mais recentemente. A lógica por trás dessas mudanças escapa ao senso deste que vos escreve, a não ser o interesse em manter algumas prerrogativas de amigos.
Foram extintas as administrações regionais de:
No Nordeste:
1. Recife, que serve aos índios Xukuru, Fulniô, Kampinawá, Atikum, Pankararu e outros do estado de Pernambuco.
2. João Pessoa, que serve aos Potiguara da Baía da Traição.
3. São Luís, que assiste aos Guajajara, Guajá, Urubu-Kaapor, Timbira e outros.
4. Kanela, na cidade de Barra do Corda, que serve aos Canela Ramkokamekra e Apanyekra.
5. Barra do Corda, que serve aos Guajajara.
6. Porto Seguro ou Ilhéus, que serve aos Pataxó e aos Pataxó Hãhãhãe, respectivamente.
Supostamente esses povos indígenas vão passar a ser assistidos por, respectivamente, Fortaleza (Recife e João Pessoa), a qual não tem nenhuma tradição indigenista e foi criada por esse decreto; Imperatriz, no Maranhão, que também cuidará dos extintos núcleos localizados em Barra do Corda; e Ilhéus ou Porto Seguro que passará a assistir aos Pataxó da região de Porto Seguro.
Prevê-se insatisfação geral entre os índios Potiguara, Fulniô, Atikum, Kapinawa, Guajajara, Guajá, Urubu-Kaapor, Canela, Timbira e Pataxó. Ficaram as administrações regionais de Paulo Afonso, que cuida dos povos indígenas do rio São Francisco, e Maceió, que assiste aos índios daquele estado e de Sergipe. A extinção de Recife, São Luís e João Pessoa estarrece a todos, sobretudo pela tradição as duas primeiras, mas também por servir a mais de 50.000 índios.
Na Amazônia Oriental e Setentrional, foram extintas as seguintes administrações:
7. Oiapoque, no Amapá, onde há uma grande concentração de índios na fronteira com a Guiana Francesa. Ficará sob a responsabilidade de Macapá.
8. Parintins, no Amazonas, que provavelmente vai depender de Manaus.
9. Altamira, no Pará, que, por conta do rebuliço que haverá com a construção da Usina de Belo Monte, ficará ao deus-dará. Com a ausência de uma administração, os povos indígenas que lá habitam – Xikrin, Parakanã, Arara, Araweté, Juruna, Xipaya e Kuruaya – poderão ser assistidos pela AER mais próxima, talvez Manaus, a 1.000 km de distância, ou Marabá, a 1.100.
10. Redenção, no Pará, que provavelmente vai se contentar com a Administração de Tucumã, ambas para índios Kayapó do Pará.
Na Amazônia Ocidental, foi extinto o Núcleo de Apoio de Vilhena (11), em Rondônia, que serve os índios Nambiquara, e as demais administrações ou núcleos de apoio tiveram seus nomes mudados.
No Centro-Oeste, foram extintos, entre núcleos e administrações:
12. São Felix do Araguaia, que serve aos índios Karajá, da Ilha de Bananal.
13. Água Boa, que serve aos Xavante de Pimentel Barbosa.
14. Xavantina, que serve aos Xavante de Parabubure.
15. Campinápolis que serve aos Xavante de Obawawe e Parabubure
16. Primavera do Leste, que serve aos Xavante de Ronuro e Sangradouro.
17. Tangará da Serra, que assiste aos Pareci, Irantxé, Nambiquara.
18. Rondonópolis, que assiste aos Bororo.
19. Goiânia, uma das mais ativas administrações, que atendia aos Xavante, Tapuio e Avá-Canoeiro.
20. Araguaína, em Tocantins, que atendia aos Krahô, Xambioá e Apinajé.
21. Gurupi, que atendia aos Karajá e Xerente.
No Sudeste e Sul, foram extintas:
22. Guarapuava, no Paraná, que serve aos Kaingang
23. Londrina, no Paraná, que serve aos Kaingang e Guarani
24. Curitiba, que serve aos Xokleng, Kaingang e Guarani
(25). Paranaguá, que serve aos Guarani do litoral, provavelmente a nova sede da nova Administração do Litoral Sul.
Portanto, foram 24 administrações regionais e núcleos de apoio extintos de uma só canetada.
Prevê-se que haverá protestos da parte dos povos indígenas e dos indigenistas de todas essas partes excluídas da estrutura da Funai. Fica evidente porque foi mantido tanto segredo sobre essa reestruturação. Ninguém da Funai sabe quem participou desse estratagema. Tampouco os representantes indígenas da CNPI foram informados sobre o teor dessa reestruturação. Alguns devem estar se arrependendo amargamente de ter participado da reunião que aprovou essa reestruturação sem vê-la.
Por seu lado, o atual presidente da Funai fez muito alarde sobre a contratação até o ano de 2012 de 3.100 novos funcionários para a Funai. Entretanto, tal proposta não está contida no Decreto presidencial nº 7.056 publicado no DOU de hoje. Ela vale tanto quanto a sua palavra, não mais.
Portanto, o resultado da reestruturação é esse que aí está. Dizer que isso é bom para a Funai e para o indigenismo, e que nesse segundo mandato o presidente Lula está fazendo o que não fez no primeiro – é brincar com a graça alheia.
A sorte está lançada. O indigenismo rondoniano está na alça de mira. Agora é esperar como isso será aplicado e qual será a reação dos atingidos.
(Por Mércio Gomes, Blog do Mércio, 29/12/2009)