Há alguns anos, pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) se debruçam sobre o tema relacionando o aumento da temperatura média ao surgimento e ao aumento de casos de doenças, como leptospirose e dengue, e problemas de insegurança alimentar, resultantes de eventos meteorológicos extremos.
A preocupação da Escola com o tema também se reflete na consolidação do programa de Pós-Graduação em Saúde Pública e Meio Ambiente, na realização de centros de estudos e sessões científicas há vários anos. O pesquisador Ulisses Confalonieri, do Programa de Mudanças Ambientais Globais e Saúde da Ensp, que integra o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), fala das pesquisas que estão sendo realizadas
Quais as consequências para a saúde que podemos esperar em relação às mudanças climáticas que estão em curso e o que podemos fazer?
Confalonieri - As mudanças climáticas afetarão a saúde de várias formas: diretamente, com efeitos físicos de eventos meteorológicos extremos, como ondas de calor, inundações; e indiretamente, com aumento da insegurança alimentar, efeitos nas populações de vetores de doenças, entre outros. O que pode ser feito de imediato é o desenho de prioridades, em termos de políticas sociais e de proteção e promoção da saúde, que reduzam as vulnerabilidades socioambientais e de saúde. Uma população afetada por problemas de saúde sensíveis ao clima é uma população vulnerável. Os números do IPCC não têm caráter alarmista, apenas indicam a gravidade das alterações ambientais esperadas para as próximas décadas, com consequências para a economia e a saúde pública mundial.
No campo da saúde, por exemplo, os estudos indicam que doenças hoje frequentes nas regiões tropicais do planeta como a dengue podem se espalhar para outras áreas do globo, elevando de 2,5 bilhões para 3,5 bilhões o número de pessoas vivendo em zonas com risco de contrair a enfermidade. Os casos de dengue devem aumentar em países que já convivem com a doença, sendo esse o caso do Brasil. Uma elevação na temperatura média do planeta até o final do século, como previsto nos cenários mais pessimistas do IPCC, pode reduzir a disponibilidade de alimentos e levar mais de 530 milhões de pessoas a passar fome. Calcula-se também que 3,2 bilhões de indivíduos venham a enfrentar escassez de água, enquanto 20% da população mundial passará a viver em zonas sujeitas a enchentes.
Em relação ao estudo Economia das Mudanças Climáticas no Brasil, que servirá de base para o Plano Nacional sobre Mudanças do Clima, quais os pontos que você poderia destacar?
Confalonieri - Destaco o caráter pioneiro do estudo pelo seu tema e por sua abrangência. Ao que me consta, nenhum país em desenvolvimento fez um estudo desse tipo, de caráter multidisciplinar. Esse estudo servirá como base sólida para estudos posteriores, visando atualizações. O estudo foi capaz de mostrar os impactos negativos futuros da mudança do clima na economia e na sociedade brasileira.
Em relação ao subprojeto de vulnerabilidade da região Nordeste, você poderia pontuar alguns comentários?
Confalonieri - Reunimos indicadores regionalmente importantes de saúde (doenças infecciosas e parasitárias, desnutrição, diarreias, entre outras), de meio ambiente (desertificação), econômico-demográficos e climáticos. O referencial conceitual baseou-se na premissa de que o ressecamento (piora na condição de semiaridez) projetado pelos cenários de clima para a região provocará grandes migrações, com impactos epidemiológicos (redistribuição espacial de doenças endêmicas) e na procura pelos serviços de saúde. As projeções climáticas apontam o semiárido como uma das áreas mais vulneráveis às mudanças climáticas no Brasil. Diminuição da frequência de chuvas, solos mais pobres, vegetação com menor diversidade biológica estão entre as previsões para a região. Alguns lugares podem se tornar inabitáveis.
Uma área especialmente vulnerável é a da saúde. Qual é o cenário previsto para o Brasil?
Confalonieri: No caso brasileiro, espera-se uma redução na diferença entre as temperaturas do inverno e as do verão. Invernos mais quentes favoreceriam a reprodução de insetos transmissores de doenças, como a malária e a leishmaniose, que podem se tornar mais frequentes. Também se prevê o aumento de enfermidades transmitidas pela água, como a diarreia e a leptospirose. Em uma região economicamente frágil como o semiárido nordestino, por exemplo, a redução da produção agrícola e a falta de trabalho podem desencadear importantes ondas migratórias. Esse rearranjo populacional demandará empenho e rapidez das autoridades municipais, estaduais e federais para tomar medidas de adaptação, como a construção de cisternas para amenizar a falta d’água e o desenvolvimento de culturas mais resistentes à seca para enfrentar as mudanças climáticas. No cenário mais drástico, as mudanças climáticas podem provocar uma redução média de 11,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do Nordeste até 2050. Essa perda associada às alterações no clima equivale a 2 anos de crescimento da economia da região no período 2000-2005.
O impacto das mudanças climáticas sobre a vida das pessoas deve aumentar os gastos municipais e estaduais com saúde e assistência social. A necessidade de investimento nessas áreas pode ainda ser ampliada por outro fator: o envelhecimento da população, consequência da queda na fecundidade e do aumento da longevidade. Na América Latina, o aumento da temperatura pode provocar, na Amazônia, um fenômeno chamado savanização: a transformação de parte da floresta, hoje formada por uma vegetação densa, rica e altiva, em uma vegetação mais aberta, baixa e rala, que lembra um cerrado empobrecido.
Atualmente, você está trabalhando com indicadores de vulnerabilidade para o Estado do Rio de Janeiro, os quais incluem questões da saúde. Você poderia destacar as questões mais relevantes?
Confalonieri - É um aperfeiçoamento do projeto anterior (nordeste brasileiro) em termos de metodologia, pois incorporamos novas variáveis e estamos trabalhando com indicadores para cada município do estado. Será uma avaliação integrada da vulnerabilidade, levando em conta cenários de clima, histórico de eventos extremos, dados socioeconômicos e de saúde e indicadores ambientais (ex-riqueza biológica).
Em relação ao IPCC, de que maneira os países em desenvolvimento poderão participar mais das discussões capitaneadas pelo grupo? Já existe alguma indicação?
Confalonieri - Já houve uma iniciativa recente que reuniu, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), pesquisadores de vários países em desenvolvimento, visando discutir a participação mais intensa dos mesmos no grupo II do IPCC (Impactos, Adaptação, Vulnerabilidade). A agenda de mudanças climáticas dos países em desenvolvimento é diferente daquelas dos países desenvolvidos por conta de sua maior vulnerabilidade e menor capacidade adaptativa. Há também diferenças relativas às capacidades dos sistemas nacionais de ciência e tecnologia.
Sobre o TDR, segundo você mesmo falou, um grupo de especialistas está discutindo as mudanças climáticas e a transmissão de doenças por vetores. Você poderia falar um pouco mais sobre isso?
Confalonieri - A mudança climática é uma realidade atual e será mais impactante ainda no futuro. Então, o TDR, que é um programa tradicional da Organização Mundial da Saúde, precisou fazer uma atualização da sua agenda de trabalho, pois as mudanças do clima afetam as doenças transmitidas por vetores. O programa TDR precisa se ajustar a isso, ou seja, há uma nova realidade ambiental que transformará sistemas biológicos e sociais e, portanto, as condições de saúde. Um relatório dessa reunião, realizada no início de dezembro, será divulgado em breve.
(Agência Fiocruz / EcoAgência, 20/12/2009)