Joel Oro Nao, indígena da etnia Oro Nao e originário da aldeia Sotério (RO) foi escolhido aos 42 anos para ocupar o cargo de administrador-regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Guajará-Mirim (RO). Durante 30 anos a função foi exercida por não-índios. "Chegou momento em que liderança indígena não ficou mais satisfeita com administração não-indígena. Sempre teve movimento indígena. Aí o presidente da Funai indicou duas pessoas de confiança dele, e três indígenas participaram da votação. Foi eleita uma liderança indígena", assim Joel explica o modo como foi escolhido administrador.
A eleição do indígena para o cargo aconteceu em 25 de maio deste ano, mas só no começo de outubro foi assinada uma portaria, oficializando seu mandato. "O presidente da Funai me convidou pra ir a Brasília. Passei uma semana com ele. Ele me deu orientação de como fazer com um cargo federal, que é cargo público e trabalha com gente grande", diz Joel.
O novo administrador da Funai em Guajará-Mirim é professor há 20 anos e se diz preparado para exercer a gestão regional da fundação. Hoje, ele vive com a esposa numa aldeia pequena chamada Baia da Coca, na Terra Indígena Rio Guaporé (RO). Confira, a seguir, a entrevista que ele concedeu ao site Amazonia.org.br, em que fala sobre a situação dos índios da região e os projetos que espera realizar enquanto novo chefe regional da Funai.
Amazonia.org.br - Você concorda que são raras as vezes em que indígenas ocupam cargos de chefia na Funai?
Joel - Sim, é raro sim. Eu sou primeiro indígena do Estado de Rondônia que assumiu como administrador regional do município de Guajará-Mirim.
Por que, em sua opinião, é tão pequena a participação dos índios na administração da fundação?
Joel - Porque acredito que os não-indios achavam que a gente não tinha competência, nem responsabilidade para assumir o cargo. Até hoje, eles falam que a gente não é capaz. Mas, hoje tem muito índio estudado, que faz pedagogia ou estuda outras áreas. Eu estudo Pedagogia. Faço licenciatura intercultural, para conhecer mais a tradição indígena. Esse curso que estou fazendo é uma forma de valorizar mais a nossa cultura, para conhecer mais a nossa língua. E é tão importante, porque tem muita etnia em que estão extintas sua língua e sua cultura. Hoje estamos resgatando o que foi perdido e pesquisando com os mais velhos, que estão morrendo. Está na hora de buscarmos esse conhecimento e registrar no papel.
Você acredita que essa formação universitária intercultural o torna mais preparado para atuar como administrador da Funai?
Joel - Com certeza. Agora fica fácil para a gente trabalhar, conhecendo nosso direito, nosso dever. Vou procurar aprender mais sobre a lei, sobre o que índio precisa e qual o dever dele, o direito dele. Primeiro, a gente não tinha acesso. Antes escondiam o nosso direito e o que o governo deve fazer. Agora, acredito que está se tornando mais fácil para nós.
Você concordava com a política desenvolvida pelos não-brancos que, durante tanto tempo, ocuparam o cargo que agora é seu?
Joel - A política sempre chega aqui, mas a gente nunca fica satisfeito. Eles faziam um projeto escondido, que não era da tradição da comunidade indígena. Mas, hoje já quero um projeto de fazer um orçamento dentro da aldeia, da aldeia para Brasília, e não para Brasília mandar teoria. A gente vai mandar teoria e prática para o governo federal. A política sempre vem prometendo tudo, mas as lideranças indígenas não acreditam mais nas politicagens que eles fazem.
O que você pretende fazer como administrador da Funai?
Joel - O governo federal, desde Collor e Fernando Henrique [Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, ex-presidentes do Brasil], tirou a estabilidade da Funai. Então, hoje nós ficamos só com assistência social, agricultura, patrimônio e mais alguma coisa. Mas, hoje, na aldeia, não se produz mais como antes. Estão deixando de plantar banana, mandioca, milho, amendoim e outras agriculturas que antes eles plantavam. Eles não têm mais apoio. Por isso eu quero pedir recursos, fazer o orçamento e enviar diretamente a Brasília, para a gente voltar de novo a produzir. Sem comida a gente não vai viver. Esse é um método de trabalho que vou fazer no inicio do ano.
O problema dos índios de Rondônia é só a falta de produção de alimentos, ou há alguma outra dificuldade?
Joel - Também existe a falta de transporte. Eu quero botar um barco grande para trazer os produtos deles [dos índios], e até para trazer o pessoal para fazer sua compra e conseguir os documentos para assistência social. Hoje, não tem mais barco que viaja com a comunidade indígena e não tem mais carros que vão para as aldeias. O governo segura tudo, e estou com um projeto de voltar a ter barco e transporte terrestre.
A falta de transporte prejudica o acesso a serviços públicos por parte da população indígena?
Joel - Sim. Tem aldeia que fica a 300 e poucos quilômetros, por via fluvial. Hoje, temos 4.140 indígenas só em Guajará-Mirim. Esses índios vivem em oito aldeias grandes, onde habitam cerca de 600 pessoas. Tem também 14 aldeias pequenas, onde vivem entre 200 e 400 pessoas. Mas, como faz apenas dois meses que assumi, ainda estou fazendo meus relatórios sobre os territórios indígenas que existem. Hoje, tem 24 escolas indígenas que ficam nas aldeias do Estado.
E essa quantia de escolas é satisfatória?
Joel - Pouco não é, porque o governo do Estado só pode construir uma escola na aldeia quando ela tiver mais de 20 alunos. Nas aldeias, a gente tem de 5ª a 8ª séries, que é o ensino fundamental. A gente está se organizando com o governo do Estado para ver se coloca também o ensino médio nessas oito aldeias grandes. Estamos lutando, mas não está no papel ainda. Queremos evitar que os índios vão à cidade para fazer o ensino médio, porque na cidade é dificil para eles. E a Funai também vai dar apoio para o aluno indígena que quer estudar e fazer o curso superior.
A mata das aldeias existentes na sua região ainda é preservada?
Joel - A região tem bastante verde ainda. Há muita mata, muita caça, aqui é fartura demais. Tem peixe, caça e uma área bem verde ainda. Aqui o índio só derruba aquele pedaço de terra para plantar para seu consumo, mas não tem derrubada grande como fazem os fazendeiros.
Você falou que pretende ampliar a produção agrícola nas aldeias. Há preocupação com o cultivo sustentável, que não degrade a floresta existente nas terras indígenas?
Joel - Hoje o governo federal está oferecendo terra para gradear (arar), já que tem muita terra aqui que dá para reaproveitar, sem precisar desmatar. Essas terras ficam perto da casa deles [dos índios]. Eles ficam cuidando, e tem recurso para isso [plantar sem desmatar], sim.
Há invasão de terras indígenas por fazendeiros na região?
Joel - As Terras Indígenas (TIs) de Rondônia estão todas demarcadas. Cada aldeia vive naquele pedaço de terra e o fazendeiro também respeita o território do próximo. Tem um pequeno problema aqui sobre madeireiros e pequenos pescadores nos rios. Mas, tem fiscalização para isso e recursos para fiscalizar área indígena. Tem equipe que fica dez, 20 dias, ou até um mês fazendo rodízio, entrando nas Tis para fiscalizar. Estamos trabalhando em parceria com a polícia florestal ambiental.
Quando você se dispôs a ocupar um cargo de chefia na Funai?
Joel - Eu sempre fui liderança indígena, e viajava muito, mas nunca sonhei que ia assumir um cargo desses. Tem outras pessoas que poderiam assumir, mas as lideranças indígenas preferem que eu assuma porque eu sou humilde, tenho diálogo com todo mundo, procuro melhorar as coisas e busco saber mais de autoridades, indígenas, deputados, senadores, vereadores e prefeitos. Procuro me envolver com essa turma para entender como funciona a sociedade não-indígena.
Você disse que foi chamado a passar uma semana com o presidente da Funai, Márcio Meira, em Brasília, logo após sua escolha para ocupar o cargo. Como foi esse tempo de conversa com Meira?
Joel - Foi gratificante para mim. Ele me deu muita força, deu muito conselho e a palavra segura: "Joel, você é administrador, é reconhecido pela nação. Seu nome tramitou pelo Congresso, parou na Casa Civil. Quem assinou seu decreto foi a Dilma [ministra da Casa Civil, Dilma Roussef], você é autoridade. Os outros funcionários da Funai em Guajará-Mirim são subordinados a você, e você é subordinado a Brasília. Você tem seu assessor de confiança em Guajará, e eu tenho assessor de confiança aqui em Brasília. Você que assina documento e determina tudo o que vocês querem dentro da aldeia".
E você vem sentindo alguma dificuldade para lidar com a administração pública, desde que teve início a sua gestão?
Joel - No começo, a gente sente dificuldade. Quando assumi, senti um pouco, mas tem pessoas com experiência lá dentro que me ajudaram muito. Falaram sobre documentação. Conheci cada setor: de pessoal, assistência social, patrimônio, educação, secretaria. Mas tem vários setores lá dentro, conversei com eles, e eles vão me apoiar e estão apoiando. Tem aqueles que não estão satisfeitos com a minha administração e dizem que não querem ser subordinados a índio. E estou seguindo a ordem do presidente da Funai, que diz que a autoridade máxima lá sou eu.
Eu falo para eles: "Mesmo que vocês não queiram que índio assuma, agora um índio assumiu, e vocês têm que aceitar. Se vocês não aceitarem, isso se chama discriminação". Falei duro com eles e disse que não vou tratar ninguém gritando. Falei que temos que fazer união para trabalhar pelo povo indígena. Não é questão de funcionário. O funcionário pode sair amanhã, mas Funai não. A Funai é do índio. Eu sou autoridade e uso esse argumento para eles me respeitarem desde o inicio.
Essas pessoas da Funai que têm sido contra sua administração são a maioria?
Joel - Não. É a minoria. A maioria é a favor.
Quais são os outros projetos que pretende desenvolver como administrador da Funai?
Joel - A saúde indígena também não está muito boa. Quero trabalhar em parceria com a Funasa [Fundação Nacional de Saúde], para somar forças. Ficaria dificil se o recurso não viesse diretamente para a Funai. A vantagem é que faço o projeto e quando ele é aprovado, o recurso vem diretamente para a Funai. Então, tem como eu administrar o projeto para ter bom resultado na aldeia. Já sentei com as lideranças indígenas. Meu trabalho vai ser transparente para meu povo. Vou mostrar onde foi gasto e quanto de recurso chegou. Quero mostrar nota fiscal para eles [os índios]. Porque quero trabalhar com ética, com responsabilidade, pra mostrar que índio também é capaz de administrar.
(Por Fabíola Munhoz, Amazonia.org.br, 14/12/2009)