Em tempos de mudança do clima, a água se torna artigo escasso. Ativistas pedem que governos garantam por lei o direito básico a recursos hídricos, para evitar que a água vire instrumento de exploração econômica. Devido à exploração indiscriminada de recursos naturais e às mudanças climáticas, cerca de um bilhão e meio de pessoas no mundo sofrem com falta d’água. De acordo com a ONU, em 2025 a demanda de água potável será aproximadamente 56% maior que a quantidade disponível. Como comparação, um habitante do hemisfério sul consome uma média de 20 litros de água por dia, enquanto um norte-americano supera os 600 litros diários.
Na América Latina, dois problemas centrais ameaçam o direito à água. Um deles é a atividade das empresas multinacionais de abastecimento e de infraestrutura sanitária. Há um grande desequilíbrio entre as altas taxas cobradas do usuário, os grandes lucros das empresas e o estado precário do sistema sanitário oferecido à população.
Outro problema é a atividade mineradora indiscriminada das multinacionais, com exploração excessiva de recursos subterrâneos e a consequente destruição das fontes naturais. E também a contaminação da água com cianureto, resultado da lavagem de minerais como o ouro. Esta corrida pelo benefício econômico não só dilapida as minas de metal, mas também envenena água, ar e solo.
“Na América do Sul, há poucos países que incluíram o direito a água em sua legislação. Apesar de muitos pensarem se tratar de um direito consagrado, isso não é bem assim. É por isso que países como Uruguai, Equador e Bolivia estão trabalhando para incluir o direito a água em sua Constituição”, explica Juan Carlos Alurralde, da ONG boliviana Agua Sustentable. Segundo Alurralde, Argentina, Brasil, Colômbia e Peru se opõem a essa ideia por achar que ela pode trazer problemas.
A lei boliviana Água para a Vida
A lei boliviana impulsionada pelo governo de Evo Morales se chama Água para a Vida. Sua história começa com a chamada “guerra da água”, no ano 2000, em pleno período neoliberal na América Latina. Nesse ano, a Bolívia tinha concedido a distribuição de água da cidade de Cochabamba à empresa Aguas de Tunari, subsidiária da multinacional americana Bechtel.
Com a concessão, as tarifas para o usuário sofreram uma alta de 300% em janeiro de 2000. Uma família de trabalhadores com uma renda média mensal de 800 a 1000 pesos bolivianos (cerca de 150 dólares) tinha que pagar entre 40% e 70% de seu salário para poder usar água potável.
Isso acarretou uma série de mobilizações populares contra a privatização, que tiveram como consequência conflitos com a polícia, um saldo de centenas de feridos e até um morto. A “guerra da água” na Bolívia foi uma prova do que pode acontecer em um futuro não muito longínquo, e em grande escala, se os recursos hídricos não forem administrados de acordo com o direito à vida.
Expropriação de recursos hídricos
“O governo de Hugo Banzer não reconheceu o direito da população a água e expropriou os recursos hídricos, entregando tudo a uma multinacional”, ressaltou Oscar Campanini, da organização Agua Sustentable. A partir desse momento, ocorreu uma paralisação das políticas do governo, apoiadas por organismos internacionais, como o Banco Mundial. Mais tarde, foram introduzidas as chamadas sociedades mistas ou público-privadas.
“Através de uma auditoria, revelou-se que 200 mil habitantes da região de El Alto não contavam com serviços de água potável, apesar do compromisso contratual da empresa”, lembra Campanini. E isso não era tudo. Os investimentos não eram realizados com capital da empresa, mas de organismos internacionais que facilitavam empréstimos, os quais a mesma população acabou pagando.
Requerendo 25 milhões de dólares de indenização, a empresa Bechtel processou o Estado boliviano, que – por sua vez –mobilizou organizações internacionais, conseguindo assim expulsar a Bechtel do país.
“Por isso é tão importante formular uma lei de águas que especifique que as empresas devem se adequar à Constituição do país”, observa Alurralde. A lei Água para a Vida determina que o Estado deve possuir 51% ou mais das ações de companhias mistas, e a iniciativa privada, no máximo 49%. Isso significa que a empresa será sempre pública. “A Bechtel, também presente no Peru, já anunciou que moverá processos contra o governo de Rafael Correa”, afirma o ativista.
“Tudo depende da sociedade civil dos diferentes países”, sublinha Alurralde. “Não é possível conter o avanço de uma legislação que proteja e garanta o acesso à água potável”, diz Alurralde. Na Colômbia, por exemplo, está sendo organizado um abaixo-assinado para que se modifique a Constituição e se implemente uma lei sobre recursos hídricos.
Grande poder das mineradoras
A mineração boliviana tem um forte elemento corporativista, afirma Oscar Campanini, da ONG Agua Sustentable. Mas também há algumas empresas multinacionais operando no país. O principal problema provocado pela mineração não é somente a contaminação, mas também a exploração excessiva dos recursos hídricos. Em muito casos, as fontes de água são depósitos fósseis subterrâneos que não se renovam, acarretando falta de água.
“Na Bolívia, há experiências importantes de mobilização e organização social”, explica Campanini, citando casos em que as demandas da população deram origem a propostas e projetos de políticas públicas. Mas ele lembra que em certos casos, como o da mineração, os apelos não são suficientes. O poder das mineradoras multinacionais, que movem imensas quantidades de dinheiro, ainda é grande demais.
(Por Cristina Papaleo, com revisão de Simone Lopes, Deutsche Welle / EcoDebate, 14/12/2009)