Bioma, ao contrário de outros, não tem uma origem única; flora partiu tanto da Amazônia quanto dos pampas gaúchos. Tal formação misturada aconteceu porque vegetais se adaptaram facilmente ao fogo, principal característica da região, dizem cientistas
A vegetação que ocupou o cerrado saiu de todos os cantos do Brasil. Escolha uma espécie qualquer e ela pode ter origens tanto na Amazônia quanto no sertão nordestino ou nos pampas gaúchos -a flora é um mosaico de origens muito diversas. Justamente por ter se formado pegando um pouco de cada lugar distante, o cerrado possui um biodiversidade tão grande.
Os cientistas brasileiros que descobriram isso, fazendo análises no DNA das plantas (leia mais à direita), ficaram surpresos, porque, em geral, ecossistemas não se formam assim. Para ajudar a entender como eles surgem, Marcelo Simon, biólogo da Embrapa em Brasília e um dos autores do estudo, dá um exemplo: a vegetação da cordilheira dos Andes. Quando os Andes se elevaram, há milhões de anos, foram ocupados, em seguida, por uma vegetação adaptada à nova temperatura (regiões altas são mais frias). Ela veio dos climas temperados da América do Norte e migrou como um todo.
Ao descobrir que as origens do cerrado eram variadas, os cientistas ficaram intrigados. Por que a mistura ocorreu? A resposta começa pela ideia de que, se uma planta "quiser" viver nos Andes, terá de vencer o frio. Mas, se tentar se espalhar pelo cerrado, o maior problema será o fogo que aparece nas épocas quentes -o clima seco permite que incêndios naturais ocorram sempre.
Mas o fogo, os cientistas descobriram agora, não é uma barreira muito grande, ao contrário do frio. As plantas têm facilidade para criar resistência a queimaduras. Vencer o frio requer uma adaptação prévia a ele, em outro bioma. Já o fogo não é um inimigo tão grande -uma planta pode se acostumar fácil, venha de onde vier.
Vegetação casca-grossa
O programa de treinamento das plantas para lidar com o fogo consiste, basicamente, em dois pontos: é preciso virar casca-grossa e não ter medo de ir parar debaixo da terra. Quando o fogo surge, a casca resistente e grossa até queima, mas ela não deixa o interior da planta ser danificado -é como se a planta tivesse uma pele tão grossa que pudesse passar pelo meio de um incêndio.
A outra adaptação é ter raízes bem grossas. Faz sentido: com isso, a maior parte da massa da planta fica por baixo do solo. Aí, mesmo que passe um apocalipse de fogo pela região onde a coitada está, ela vai sobreviver. São características relativamente simples. Então, poucas gerações após a colonização, as plantas sobreviventes já estavam adaptadas ao cerrado.
Há 4 milhões de anos, flora ocupou bioma
A ocupação do cerrado ocorreu há uns 4 milhões de anos. De lá para cá, claro, a vegetação continuou mudando, impulsionada pela seleção natural. Quem estuda o que houve com as espécies nesse período todo são cientistas especializados em história evolutiva -eles procuram saber também de onde elas vieram. Ainda há muito a fazer, dizem.
"Estudos desse tipo ainda são raros, tem muita coisa que a gente ainda não entende direito", diz Simon. Não se sabe bem, diz, qual a história evolutiva da Amazônia ou da mata atlântica, por exemplo. A principal ferramenta que Simon e seus colegas cientistas utilizam é analisar o DNA de algumas espécies de um bioma (no caso, o cerrado) e depois comparar os resultados com os obtidos em vegetações diferentes. Assim, como em um teste de paternidade, é possível estabelecer parentescos.
(Por Ricardo Mioto, Folha de S. Paulo, 13/12/2009)