Pode acontecer só em um processo nunca visto como este: no qual os mortos são milhares e serão ainda mais nos próximos anos. Pode acontecer, portanto, que, às 15 horas em ponto desta quinta-feira (10/12), o pároco da vila Roncaglia de Casale Monferrato, na Itália, levante a mão para abençoar o caixão do operário Mauro Rosso, 51 anos. "A última vítima, levada embora pela Eternit", recita o padre, e por uma sentença sem apelo: mesotelioma da pleura.
E pode acontecer que, naquele mesmo instante, na grande sala magna do Palácio de Justiça de Turim, a voz e o rosto da chancelaria do tribunal lancem sobre a multidão presente, pelo telão e pelos altofalantes da teleconferência, a chamada nominal das partes civis. Outras tragédias, outra raiva, outra sede de justiça. "Herdeiros de Grasso Giovanni... herdeiros de Grillo Luigi...".
O ritmo da chamada não para, e então Alfio Icardi se lembra de quando, para a Epifania, seu pai Carlo o levava à distribuição dos presentes da empresa. "Para mim, durante muito tempo, a Eternit foi a Befana [bruxa boa que traz presentes na festa da Epifania]: me dava brinquedos. Só quando meu pai morreu eu entendi...".
Um processo enorme pelos seus números: 2.154 mortos e pelo menos 1.600 partes civis. Processo "mundial" que, pela primeira vez na história judiciária internacional, chegou a arrastar para o banco dos réus não os burocratas e os diretores de cada estabelecimento, mas os dois donos de uma multinacional: o barão belga Jean Louis de Cartier de Marchienne e o magnata suíço Stephan Ernest Schmidheiny.
Para que pudessem começar, nesta quinta-feira de manhã, tiveram que enfiar juízes e advogados na "maxi-sala 1", a mesma da deposição do informante mafioso Gaspare Spatuzza. E depois, como em um espetáculo de Luca Ronconi, em tantos outros "lugares" de justiça: três grandes salas para as partes civis e os 18 chanceleres prontos a registrar as constituições, e o auditório da Província para o público.
E é ali, entre as pessoas sentadas pacientemente, com o bom hábito da festa e o adesivo amarelo e vermelho colado no peito ("Eternit: justiça por uma tragégia"), que se deve buscar as histórias dolorosas de Mauro Rosso ou de Piero Ferraris, 77 anos, que morreu no final de novembro e era um dos poucos operários sobreviventes. Os últimos nomes da terrível estatística anual de Casale Monferrato e de todos os outros "postos" italianos do amianto.
Cinquenta mortes a cada 12 meses, uma mais, uma menos, só em Casale e com a certeza de chegar a 2.030. Os epidemiologistas já fizeram as suas contas, geração após geração. Na Itália, pelo contrário, os mortos são 3.000 a cada ano.
Di Mauro e di Piero, porém, não poderão se ocupar do debate que iniciou ontem. Será preciso esperar pela investigação "Eternit bis" já iniciada pelo procurador Raffaele Guariniello. Assim como Patrizia Saviotti, a empregada dos correios do bairro Popolo, também entre os mortos de novembro, não poderá ainda encontrar justiça. Mesotelioma da pleura, os sintomas que na cidade todos conhecem de memória e procuram, buscam, apalpam em si mesmos, nos parentes, nos amigos, nos vizinhos: uma tosse sutil, as dores no lado e depois o líquido no abdômen. "A água na barriga", como dizem aqui.
Em Casale, aquele chuvisco feito de penugem, era "o ar que se respira" e agora está aninhado nos pulmões de quem então era criança e não sabia que já havia programado a própria morte. Porque, depois da morte de Piero Ferraris, existem apenas 281 os ex-funcionários da Eternit: 10% da antiga força de trabalho. A fábrica foi fechada para sempre em 1986: agora, está destruída até o chão, e o amianto é ilegal desde 1992.
Mas o resto dos que morrem hoje, 2/3, são e serão eles: quem nunca esteve lá dentro. Rita Padoin, há 20 anos, viu seu marido Alessandro morrer sufocado, os pulmões e a pleura devorados pelo câncer. "Ele trabalhava em um outro lugar, mas morávamos ali. Para mim, não podem dizer que a Eternit pelo menos nos dava de comer: ela me deu só a morte".
Aqui chamam-lhes de "cidadãos" para distingui-los de quem morreu por ter sofrido com a Eternit. No início, cabia às mulheres: mães, mulheres, irmãs, namoradas, que lavavam as roupas dos seus homens, banhavam-nos quando saíam da fábrica, acariciavam os seus cabelos. Depois, começou a sequela dos homens de 40 e de 50 anos. "Daqui até os próximos 11 anos, poderão morrer mais de 900 pessoas", diz Daniela Degiovanni, médica que se ocupa dos tratamentos oncológicos paliativos em Casale.
Do lado de fora, na frente do Palácio de Justiça, desfilam os cartazes preparados pelo arquiteto suíço Francois Iselin, um trotskista que há anos conduz uma batalha contra o amianto que mata. Vinte e sete fotos em preto e branco e com os rostos tapados com uma máscara preta: algumas das vítimas da Suíça francesa. Os habitantes de Casale sobem a escada de acesso, olham atônitos e depois se voltam para outro lado: quase como se intuíssem o enésimo presságio.
(Por Ettore Boffano, La Repubblica / IHUnisinos, com tradução de Moisés Sbardelotto, 12/12/2009)