As investidas dos deputados estaduais Eustáquio de Freitas (PSB) e Atayde Armani (DEM) contra o reconhecimento das terras tradicionalmente quilombolas do norte do Estado, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ganhará mais um capítulo nesta quinta-feira (10/12), com audiência pública em São Mateus, iniciativa das comissões de Agricultura e de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Os negros da região, representados pela Comissão Quilombola Sapê do Norte, não foram convidados. Nem o Incra.
Apesar de o antigo território de Sapê do Norte, formado pelos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, pertencer, por direito, aos descendentes dos escravos negros, os parlamentares têm liderado verdadeira campanha contra o Incra, desde que o órgão publicou a Portaria n° 329, declarando serem tradicionalmente quilombolas as terras da Comunidade Remanescente de Serraria/São Cristóvão, em São Mateus, em novembro último.
A publicação do ato se consolidou com atraso, já que o processo era aguardado desde julho. Mas a espera dos negros é de décadas. Desde a ditadura militar, quando a transnacional Aracruz Celulose se instalou na região, as famílias quilombolas lutam pela recuperação de seu território. A empresa se instalou com favores dos governos da época, quando usurpou grande parte das terras dos descendentes de escravos, ou as tomou à força ou por processo de sedução, com falsas promessas.
Com a portaria, 45 famílias poderão viver e garantir sua sustentabilidade, em 1.129 hectares. Elas foram cadastradas durante a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que garantiu a legitimidade dos direitos quilombolas e a forma como as terras foram ocupadas.
Os atuais ocupantes do território (proprietários e posseiros) receberão indenização em espécie pela expropriação da terra e das benfeitorias existentes no local, com base em valores de mercado. Eles têm até janeiro próximo para desocupar a área.
Com o processo de titulação, o Incra cumpre o artigo 68 da Constituição Federal, o Decreto n° 4.887/2003 – que regulamenta a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas – e a Instrução Normativa/Incra nº 20/2005.
Mas os deputados estaduais insistem em criticar a metodologia de auto-identificação usada pelo órgão, com argumentos que ignoram a existência dos verdadeiros donos das terras e da própria história da região. As terras quilombolas foram ocupadas ilegalmente, processo que se estendeu aos atuais proprietários, que serão, portanto, devidamente indenizados.
A campanha liderada pelos parlamentares atende aos desejos do Movimento Paz no Campo (MPC), que defende os interesses do latifúndio monocultor de ruralistas em relação às grandes corporações, como a própria Aracruz Celulose – agora Fibria. No norte do Estado, a entidade existe para minar a implementação da lei que reconhece o território quilombola. Denúncias da Rede Alerta Contra o Deserto Verde apontam para lobbies nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, notadamente sobre os órgãos públicos responsáveis pelas políticas e direitos territoriais das comunidades quilombolas.
As ações do Movimento Paz no Campo geram tensão e violência na região, com prática de racismo contra os negros. O MPC já foi denunciado por ameaçar de morte os quilombolas e funcionários do Incra, e de coação, com apoio da segurança armada da ex-Aracruz Celulose. E ainda por invadir uma reunião entre a comunidade e a Comissão Especial de Monitoramento das Violações do Direito Humano e à Alimentação Adequada, como uma forma de intimidação.
O território dos negros do Estado é de cerca de 50 mil hectares, ocupados em sua maioria pela transnacional, mas também por fazendeiros, posseiros e grandes produtores. Ao todo, 38 comunidades quilombolas vivem em Sapê do Norte. Sem suas terras e vítimas dos impactos ambiental, social e econômico causados pela monocultura do eucalipto, e ainda de violência praticada pela ex-Aracruz, os negros encontraram na produção de carvão o único meio de subsistência.
Além do reconhecimento, este ano, do território de São Cristóvão/Serraria, em São Mateus, e de Retiro, em Santa Leopoldina (região serrana), os negros aguardam ainda a titulação de São Domingos, Angelim I e São Jorge. Há mais de um ano os estudos nessas comunidades são aguardados. O dois processos seguem para a Casa Civil da presidência da República, para edição do decreto de desapropriação por interesse social da área, possibilitando o início das vistorias de avaliação dos imóveis.
Os quilombolas têm direito à propriedade da terra por determinação do artigo 68 da Constituição Federal. E o direito à autoidentificação das comunidades quilombolas pelo Decreto 4.887/03, e a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), fixada pelo Decreto Nº. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. O direito à autoidentificação é garantido, ainda, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O evento será realizado no Clube dos Empregados da Petrobras (Cepe), no Km 2 da Estrada São Mateus X Guiri, às 18h30. Segundo os deputados, participarão representantes do Ministério Público e do Poder Judiciário, e lideranças políticas, religiosas e de proprietários.
(Por Manaira Medeiros, Século Diário, 09/12/2009)