Mais um caso de preconceito e desinformação abala a dignidade social e política de uma comunidade indígena no Brasil. Desta vez, quem reclama é a comunidade Tupinambá, da Serra do Padeiro, na Bahia. Visitados recentemente por uma equipe da revista Época, prestaram todas as informações requeridas pelos jornalistas, receberam-nos com sua hospitalidade simples mas acolhedora, apresentaram a eles o dia a dia e os reclames da comunidade.
O resultado: uma reportagem que, segundo eles, contraria tudo o que disseram aos repórteres da Época. Em solidariedade ao povo Tupinambá, ao qual a Fase Bahia sempre dedicou apoio, republicamos aqui a carta escrita pela própria comunidade neste início de mês. Na carta, eles relatam mais do que o boicote sofrido pela grande mídia. Contam que o povo Tupinambá vive violências de outros tipos, e com conseqüências ainda mais graves do que a calúnia e a difamação. Leia abaixo a carta dos Tupinambá da Serra do Padeiro.
Da comunidade Serra do Padeiro
Para: Sexta Câmara, FUNAI, Ministério da Justiça, Secretária de Justiça do Estado da Bahia, Câmara de Deputados da Bahia, Governo do Estado da Bahia, Comissão Nacional de Direitos Humanos, e demais autoridades.
Para: APOINME, CNPI, CIMI, ANAI, CESE e demais parceiros.
Prezados Senhores.
Vimos, por meio desta, externar toda nossa indignação e revolta com a matéria publicada na revista Época de 23 de novembro de 2009, quando de forma preconceituosa e difamatória tenta retratar a nossa liderança como um Lampião. A repórter Mariana Sanches e o fotógrafo Marcelo Min tiveram a oportunidade de conhecer muito de nossa comunidade, as nossas produções, as nossas casas de farinha, o nosso colégio, as nossas crianças. Tiveram a oportunidade de desfrutar de toda nossa hospitalidade e conhecer muito de nossa luta pelo resgate de nossas terras. Mas, de forma mentirosa, desviaram todas as nossas informações, mudando inclusive muita das informações prestadas.
Apesar de nossa revolta com a matéria da Época, este tipo de atitude da revista não é nenhuma novidade para a comunidade Tupinambá, pois aqui na região os jornais locais, as rádios (em especial as AM), e a televisão, constantemente fazem isto. Nos tratam de forma preconceituosa e difamatória. Por exemplo, o radialista Ribamar Mesquita, da Rádio Jornal de Itabuna, constantemente usa de seu espaço nesta rádio para nos acusar de vários crimes, nos difama e até incita a população regional contra a nossa comunidade.
Os jornais Agora e A Região, também de Itabuna, nos tratam de forma preconceituosa nos chamando de falsos índios, publicando sempre matérias contra a nossa comunidade e também colocando a sociedade contra a nossa comunidade. Mas acreditamos que a culpa da não é só deles, pois a nossa comunidade tem feito várias denúncias sobre esta situação. Já vieram várias comissões de Direitos Humanos aqui nas nossas aldeias e estes fatos já foram colocados, e como nada foi feito, eles se sentem fortalecidos e no direito de continuar nos atacando.
O sentimento de impunidade, de superioridade e o dinheiro de quem os patrocina fazem com que estas mentiras divulgadas pelos meios de comunicação se tornem quase uma “verdade absoluta”. Outra situação colocada pela matéria é a posição do delegado Cristiano, da Polícia Federal, e o resultado do inquérito que apurava a tortura contra membros da nossa comunidade. Por várias vezes, solicitamos das autoridades que outro delegado viesse acompanhar as investigações.
Não fomos atendidos, e portanto não é nenhuma surpresa que o resultado do inquérito foi que os policiais não cometeram nenhum crime. Que outro resultado poderia sair de um inquérito que é conduzido por um delegado que é o coordenador do comando da operação que terminou resultando na prática de tortura? Seria esperar muito que o inquérito apontasse outro resultado, apesar de todas as provas mostrarem que a tortura foi praticada.
A comunidade encontra-se bastante preocupada, pois a história de perseguição e calúnias se repete. Os mais velhos nos lembram que, no passado, a nossa liderança Marcelino também foi chamado de Lampião e acusado de chefiar um bando aqui na região. Colocaram prêmio pela sua cabeça e diante da falta de autoridade e de nada ser feito, a nossa liderança foi assassinada, e o mais impressionante é que após quase cem anos a história se repete do mesmo jeito e com os mesmos atores. Esperamos que desta vez a história não tenha o mesmo final.
Um dado interessante que a revista coloca, e isto demonstra para todos nós os reais interesses que tem por trás de toda esta trama, é a presença de muita gente grande por trás destas ações, como o banqueiro Armínio Fraga, um dos invasores de nosso território. Portanto, desta vez as Organizações Globo, com esta matéria tendenciosa e mentirosa, não está defendendo apenas os interesses dos outros mas também o dela mesmo. Aliás a Globo já mantém esta prática de defender os interesses dos grandes latifundiários, dos banqueiros, dos políticos que a ajudam a se manter no poder contra as pequenas comunidades, há muito tempo.
Diante de tudo isto, de todos estes fatos relatados e dos já conhecidos por todos vocês, vimos mais uma vez solicitar que providências sejam tomadas, mas providências de verdade. Não dá mais para ficar ouvindo promessas, ficar recebendo visitas, sermos ouvidos por muitas autoridades e não sentirmos que as coisas estão andando. Acreditamos que é preciso fazer ainda mais e agilizar a resolução da demarcação de nossas terras.
Que haja um esforço ainda maior das autoridades envolvidas nesta questão em esclarecer e resolver esta situação, como por exemplo, o esclarecimento e os encaminhamentos para que os pequenos produtores sejam reassentados, suas benfeitorias sejam indenizadas. Este procedimento pode resultar na retirada de cena de pessoas mal intencionadas que têm usado os pequenos agricultores para realizarem seus interesses políticos, colocando os pequenos agricultores contra a nossa comunidade com o repasse de falsas informações.
São estes políticos envolvidos e empresários da região, que viram seus interesses abalados pela nossa ação, que têm financiado toda esta ação contra a nossa comunidade, a própria matéria da revista Época deixa isto muito claro. Eles trazem gente de fora, eles bancam e com certeza devem pagar aos jornais, revistas e radialistas para que nos ataquem. Vale lembrar que a nossa ação feriu os interesses do tráfico de drogas da região, tráfico de animais silvestres, do comércio de madeira ilegal e do agronegócio, e isto tem mexido nos bolsos deles.
Por fim, pedimos a todos: autoridades, parceiros, aliados, sociedade regional, nacional e internacional, não deixem que a história se repita com o mesmo final. Queremos apenas viver e lutar pelos nossos direitos, e em especial pela nossa Mãe Terra. Ela nos pertence. Não permitam que mais uma vez os invasores sejam os vitoriosos nesta história. BASTA DE MASSACRE, DE EXPLORAÇÃO, DE MENTIRA, DE CALÚNIA, DE IMPUNIDADE.
Serra do Padeiro, 1 de dezembro de 2009.
(Fase, 03/12/2009)