Desde o final da primeira metade do século passado, os urbanistas que implantaram o modelo urbanístico de São Paulo aplicaram uma ideia pragmática que norteou o traçado das novas avenidas: para construí-las, usaram os fundos de vale, onde estavam os rios. Exemplos não faltam: 23 de Maio, 9 de Julho e Pacaembu. Isso sem contar as marginais. O modelo perdura até hoje: são recentes a Jacu-Pessego e a Roberto Marinho, por exemplo.
Tecnicamente, não é difícil resolver o problema canalizando o curso d'água, domando a natureza com a engenharia. Isso prova que a prioridade nunca foi construir uma cidade em harmonia com o ambiente. Este conceito nem existia. Dar vazão ao fluxo de veículos individuais era o centro da questão. Aliás, era não: ainda é -vide a prioridade do governo em gastar uma montanha de dinheiro em uma obra inútil como a ampliação das marginais.
Na outra ponta, sem a fiscalização, a periferia ocupa margens de rios ilegalmente: na linha da miséria, se constrói barracos na beira d'água aguardando o inevitável -situações como a foto da capa da Folha da última quarta-feira [barracos ao lado do córrego Caboré].
A notícia positiva é que a legislação ambiental avança. Em novas construções legalizadas há exigência cada vez maior em relação a áreas permeáveis. Por outro lado, há décadas que os rios e córregos são protegidos por lei que restringe construções a menos de 30 metros da linha d'água. Mas São Paulo está longe de ser 100% legalizada. Pensando nas chuvas desta semana, a solução é o óbvio: como qualquer outra cidade, São Paulo precisa de áreas inundáveis. Sem isso, não há como conter precipitações acima da média. Há mais de duas décadas, a resposta do poder público é o piscinão: vazios subterrâneos que evitam inundações.
Em teoria, contudo, eles perduram o erro da relação equivocada com o meio natural. Na contramão do pragmatismo, que falhou, ouso dizer: o grau de civilização de uma cidade pode ser medido com a relação que ela estabelece com seus rios. Não estou pensando em Paris, Roma ou Londres.
Aqui pertinho, em Curitiba, uma ideia simples ajudou a cidade a resolver dois problemas: as várzeas foram ocupadas por parques, aumentando a área verde, mas que também servem para conter as águas das chuvas acima da média. Certamente, não é uma solução universal, mas serve como exemplo para pensarmos que está na hora de estabelecer relação mais inteligente com a água.
(Por Fernando Serapião*, Folha de S. Paulo, 04/12/2009)
*Fernando Serapião é arquiteto e editor-executivo da revista Projeto Design