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contaminação com agrotóxicos pessoas contaminadas desastre de bhopal
2009-12-04

Panna Lal Yadav acordou naquela meia-noite com os gritos aterrorizantes e o tumulto de gente correndo. Sentiu que o ar “se transformava em fogo” e queimava seus ossos e pulmões. Não podia enxergar claramente, mas ouvia que seus filhos não paravam de tossir. Desesperado, gritou para sua mulher que, assim como seus vizinhos, deviam fugir. “Nas ruas vimos que as pessoas caíam fulminadas como moscas depois de ser tocadas pelos gases. Tivemos de correr entre cadáveres”, lembra ainda, perturbado.

Panna e sua família viveram na madrugada de 3 de dezembro de 1984 um dos desastres mais graves da história. Em sua cidade, Bhopal, no centro da Índia, e muito perto de sua casa, 42 toneladas de um dos produtos químicos mais tóxicos, o isocianato de metila (MIC), escaparam em forma de gás da fábrica de pesticidas americana Union Carbide.

Nessa noite morreram quase 3.000 pessoas, e nos dias seguintes até 15 mil, segundo os números oficiais conservadores. Segundo várias ONGs e ativistas, poderiam ser até 25 mil mortos e cerca de 100 mil as pessoas com sequelas permanentes: câncer, problemas no estômago, no fígado, nos rins, nos pulmões, transtornos hormonais e mentais…

Passados 25 anos, Bhopal continua sofrendo. A situação ainda é desastrosa. Os diretores da Union Carbide, encabeçados por seu presidente, Warren Anderson, escaparam da Índia e do processo criminal aberto contra eles. A fábrica ficou abandonada e sem limpeza. No que é hoje o centro da cidade permanecem mais de 300 toneladas de produtos químicos perigosos – entre eles DDT – em contêineres que ficaram desprotegidos até apenas quatro anos atrás.

Outras 10 mil toneladas de dejetos tóxicos continuam enterradas perto da fábrica, segundo as ONGs. A Union Carbide mantinha tanques de evaporação pelos quais passavam seus dejetos químicos tóxicos, e lá ainda estão toneladas de sedimentos perigosos. E em cima deles muita gente vai fazer suas necessidades todas as manhãs, pois poucos dos barracos próximos têm banheiros.

“Mesmo que não tivesse ocorrido um vazamento de gás, o desastre era iminente. E com o passar dos anos e as chuvas esses tóxicos se infiltraram no subsolo e atingiram a água que cerca de 30 mil pessoas bebem”, afirma Rachna Dhingra, que chefia a Campanha Internacional de Justiça em Bhopal, que reúne as associações de vítimas.

A água disponível em alguns locais contém altos níveis de produtos químicos nocivos, incluindo clorofórmio e tetracloreto de carbono, conhecido cancerígeno, de acordo com os resultados de vários estudos. E perto da fábrica também foram encontrados metais pesados nocivos, segundo denunciou a Greenpeace. O processo judicial é longo, e no ano passado o caso foi reaberto, com a exigência de que a empresa limpe a área e compense economicamente os milhares de pessoas que beberam água contaminada.

O governo do estado de Madhya Pradesh, do qual Bhopal é a capital, estabeleceu um sistema de encanamento de água potável, que ainda é insuficiente. No bairro de Sunder Nagar os moradores fazem fila para conseguir água limpa. Raju Raikwar, um vendedor de peixes, diz que às vezes falta água durante uma semana. “Mas pelo menos não precisamos mais beber diariamente a contaminada. Tinha um sabor amargo e ficávamos doentes do estômago. Nossos pulmões e a garganta doíam”, queixa-se.

Segundo a associação de vítimas, ainda são minoria as pessoas que recebem água potável permanentemente. Muitas ainda bebem o líquido contaminado. “Sabemos que tomamos veneno e o damos na boca de nossos filhos. Mas o que podemos fazer?”, lamenta uma afetada, a professora escolar Kalpana Rajarat.

A família de Panna Lal Yadav resume amargamente as consequências da catástrofe de Bhopal. Dias depois do desastre morreu sua filha menor, com apenas um ano de idade. “Sua pele começou a cair aos pedaços”, conta o pai, hoje sexagenário, que foi operário da fábrica da Union Carbide. Ele mostra os papéis que demonstram que ainda lhe devem alguns pagamentos. Sua vida sempre foi dura: cansaço crônico, falta de apetite e de ânimo. Agora a única coisa que pode fazer é vender amendoins, o que lhe dá uma renda muito pequena.

Seus filhos também se sentem fracos, sofrem de psoríase e dores no peito. Até pouco tempo atrás bebiam água contaminada. Um dos filhos de Panna teve dois filhos com paralisia cerebral: Vikas e Aman, de 10 e 8 anos, têm olhos brilhantes e curiosos e um sorriso encantador, mas seus corpos não lhes respondem. Não podem se alimentar sozinhos, nem andar, nem tomar banho ou ir sozinhos ao banheiro. A mãe teme que nunca cheguem a ser independentes.

Vikas e Aman pertencem à segunda geração de vítimas de Bhopal, assim chamada pela alta incidência de crianças com defeitos congênitos: até dez vezes mais que nas comunidades com água potável, segundo um estudo da clínica Sambhavna, que atende gratuitamente 30 mil pacientes graças a doações privadas.

Os pais de Vikas e Aman eram crianças quando ocorreu o desastre, e beberam veneno quase toda a sua vida. “Meus filhos estão sempre sorrindo, mas não entendem nada, mesmo quando estou chorando por eles. É muito triste. Não sei o que vai acontecer quando não houver quem cuide deles.” A avó dos meninos, Umvati Yadav, lamenta: “O que me dá mais raiva é que nem a empresa nem o governo assumem qualquer responsabilidade”.

Crianças cegas, surdas, com retardo mental ou corpos de extremidades rígidas, grotescamente entrelaçadas, recebem reabilitação em Chingari Trust. Esta ONG cuida de 320 jovens. “Há muito mais crianças doentes em Bhopal por causa do vazamento da Union Carbide, mas só levamos em conta as que podemos ajudar e temos certeza de que seus pais foram vítimas do vazamento de gás”, afirma o administrador, Tarun Thomas.

Muitos meninos são muito menores que outros de sua idade. Suraj, aos 12 anos, tem a altura de seu vizinho de seis. Um estudo do “Jornal da Associação Médica Americana” concluiu em 2003 que os filhos de pais expostos ao gás pesam menos. O crescimento sofre atrasos e a parte superior do corpo é desproporcionalmente menor que a inferior.

As crianças que nascem doentes hoje não são reconhecidas como vítimas pelo governo, e portanto não recebem qualquer tipo de ajuda oficial. “Não há vítimas de segunda geração. Crianças com defeitos de nascimento existem em todo lugar. Não há em seu país?”, pergunta à jornalista o ministro para a Reabilitação e o Alívio da Tragédia de Bhopal, Babulal Gaur, em seu chalé luxuoso. O político octogenário, que foi governador do Estado, afirma que não recebeu qualquer queixa das vítimas.

“Foi uma grande tragédia, mas as vítimas já estão mortas. Os afetados já foram indenizados e agora a reabilitação está funcionando bem. Já não há contaminantes na fábrica porque as chuvas de 25 anos lavaram tudo”, comenta. E então para que seu ministério? “Porque prometemos às pessoas que sempre estaríamos aqui para cuidar delas”, afirma.

Mas essa opinião é exatamente a oposta da que expressam as vítimas e os ativistas. “Um quarto de século depois da tragédia os moradores de Bhopal não receberam justiça e não conseguem viver dignamente. A Union Carbide se negou a assumir as responsabilidades e os governos, tanto nacional como estadual, falharam; foram corrompidos pela empresa. Temos inúmeras provas de subornos de milhares de dólares para políticos.” A acusação é feita pela representante das vítimas, Rachna Dhingra, que fala de um intenso tráfico de influências. O advogado defensor da companhia nos tribunais é o porta-voz do governista Partido do Congresso, Abhishek Manu Singhvi.

A reclamação de responsabilidades dos bhopalis tornou-se mais difícil em 2001, quando a Union Carbide foi comprada pela Dow Chemical, também americana, que se nega redondamente a assumir qualquer responsabilidade. A Dow nunca foi proprietária nem operou a fábrica e a comprou mais de 16 anos depois da tragédia. A empresa tem interesses no subcontinente, onde produz e vende seu inseticida Dursban, que por causa de sua toxicidade é proibido para uso comercial nos EUA.

A indenização às vítimas de Bhopal se limita por enquanto ao acordo que a Union Carbide fez com o governo indiano em 1989: US$ 470 milhões de indenização, uma pequena parte dos US$ 3 bilhões exigidos originalmente. Cada uma das vítimas recebeu em teoria vários pagamentos no total de 50 mil rúpias (cerca de 720 euros hoje), mas muitos denunciam que nem sequer receberam essa quantia.

A família de Panna Lal sim, a recebeu para cada um dos membros doentes. Assim puderam construir a modesta casa de tijolos onde vivem. Não deu para mais nada. “O tratamento das crianças é muito caro e além disso elas exigem muita atenção”, diz a avó. A família não usa os hospitais do governo porque o serviço é péssimo.

Não são só as vítimas que se queixam desses hospitais: o relatório apresentado este ano à Suprema Corte por uma comissão de investigação independente revelou que o número de médicos é reduzido, os remédios tem baixa qualidade, a informação aos pacientes é precária e a higiene choca pela ausência.

E, como em muitas outras histórias na Índia, a pobreza agrava tudo. Depois da catástrofe, o terreno ao redor da fábrica de pesticidas se desvalorizou e foi invadido por barracos de plástico, madeira e chapas. Além disso, há a contaminação. Talvez por causa dela um estudo de um hospital público situa na área da tragédia altos índices de mortalidade. “Não podemos expulsá-los dali, de seus barracos. Este é um país democrático e as pessoas podem viver onde quiserem”, diz o ministro Gaur.

Com o crescimento da cidade, o lugar ficou no centro desta capital que em 2011 terá 2,1 milhões de habitantes, segundo estimativas oficiais. Teoricamente, ninguém pode entrar na fábrica sem autorização, mas embora uma das laterais esteja cercada e vigiada por guardas, nas outras basta saltar uma pequena cerca de menos de 1 metro para entrar. As crianças vão habitualmente ali jogar críquete, e as famílias entram para cortar ervas secas para alimentar o fogo. No centro do solar, a antiga fábrica de pesticidas é imponente. Parece o cenário de um filme de ficção científica abandonado depois de um ataque biológico. Aos poucos, os gigantes de ferro abandonados foram cobertos pela ferrugem e a vegetação.

O governo do estado pretendia abrir a fábrica ao público ao se completar o 25º aniversário da tragédia. “Tratava-se de que as pessoas vissem que não é perigoso”, afirmava o ministro. Mas as manifestações das vítimas detiveram a tentativa. “O governo quer apregoar que está limpo, que não há problema, para se livrar da descontaminação do lugar e, por outro lado, das responsabilidades”, diz a porta-voz das vítimas.

Enquanto isso, em Bhopal e algumas outras cidades da Índia e do resto do mundo, começou uma série de campanhas lembrando o desastre e exigindo justiça. A Anistia Internacional afirma em sua campanha que “Bhopal é uma zombaria aos direitos humanos. O legado de Bhopal sobrevive porque seus habitantes nunca puderam reivindicar seus direitos. Além disso, os efeitos negativos do vazamento afetam as novas gerações”.

Apesar de todo esse movimento internacional, as vítimas têm pouca fé. Um quarto de século de espera lhes tirou a esperança. Panna Lal, afetado e avô dos meninos Vikas e Aman, é taxativo: “Talvez tivesse sido melhor morrer no dia do desastre. Pelo menos os que morreram já não estão aqui. Nós estamos sofrendo há 25 anos”.

(Por Ana Gabriela Rojas, El País / UOL Notícias / EcoDebate, com tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, 04/12/2009)


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