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terras quilombolas aracruz/vcp/fibria direitos quilombolas
2009-11-16

“O povo vai morrer de fome
Ou comer erva daninha
Porque raiz de acalipe
não dá pra fazer farinha”

(Toada do mestre Pedro de Aurora por ocasião da entrada dos eucaliptais da Aracruz Celulose em Conceição da Barra)

Esse quilombola, de nome Berto Florentino, que a Aracruz Celulose, agora sob o rótulo de Fibia, quer destruir, é meu chegado há 40 e alguns anos. Estou apto, portanto, a falar dele. A seu favor, claro, lógico, aliás. E ainda com a emoção necessária de quem está falando de um guerreiro. Um guerreiro de raízes profundas, como revelam suas resistências às milícias armadas da Aracruz e aos contingentes policiais, incumbidos de criminalizá-lo para retirá-lo da frente de luta pela reconquista das terras quilombolas.

Vejam agora suas raízes e avaliem o seu combate à Aracruz.

Pelas raízes. O avô, o escravo Florentino, fez parte da luta na região pela libertação dos escravos e da criação do território quilombola, que, originariamente, ia de São Mateus a Pedro Canário, passando por Conceição da Barra. Foi ainda uma figura exponencial no inicio da existência do Ticumbi, principal manifestação cultural dos quilombolas do Espírito Santo. Foi um de seus primeiros mestres.

A família do Berto está, portanto, no Ticumbi desde a escravidão.  Ainda na época da escravidão, com o seu avô, Florentino. Prosseguiu nela com o seu pai,  Manoel Florentino, que era mais conhecido como  Coxi, e os  irmãos do pai, Mário, Minerte, Liberiz, Máximo e Tico. E com Berto nos últimos 43 anos. Inclusive, há mais de 30 anos, os ensaios do Ticumbi são no terreiro dele, que atualmente está também servindo de palco para invasões políciais, atrás dele como alguém marcado a ser banido da região.

Vale lembrar que o Ticumbi é um quadro de folclore representado por apenas 16 negros e mais um menino que carrega o estandarte de São Benedito. O dia principal da sua apresentação é o primeiro do mês de janeiro na porta da igreja de São Benedito, na sede do município de Conceição da Barra. Dá para entender que a existência do Ticumbi tem o DNA dos Floretino,  nos 200 anos estimados de sua existência. O avô com 64 anos, o pai com mais 60 e Berto com os seus 43 anos.  São 167 anos de Ticumbi.

Os Florentino têm também uma história de resistência à Aracruz. Foram os primeiros a recusar a entrega de suas propriedades em troca das benfeitorias, como ocorreu com os demais. Resistência que se estendeu até os chamados anos de chumbo – da ditadura militar, quando a Aracruz praticamente tomou conta de quase todo o território quilombola, em torno de 40 mil hectares.

Num bem urdido plano que contou até com oficial da ativa do exercito, o tenente Merçon.  Ele era encarregado de dar a ordem de despejo em nome do regime, deixando sempre na propriedade um negro, conhecido de todos pela alcunha de Pelé, para tratar do levantamento das benfeitorias para posterior indenização. Um sistema de atemorização que surtiu os efeitos desejados, já que contava com a cobertura do  governo do Estado, através do governador Arthur Carlos Gerarhdt dos Santos.

Os Florentino voltaram a bater de frente, não se intimidando com as ameaças do tenente Merçon.  Mantiveram suas terras incólumes, mas até certa altura. Eram 80 alqueires, para o pai de Berto, irmãos e irmãs. Mas, na medida em que as matas e os mandiocais foram dando lugar aos eucaliptos, produziram-se diversos fenômenos, entre os quais mudança do microclima. Os córregos foram desaparecendo, sumiram 156 deles, e os rios foram  secando.

Na ocasião, o naturalista capixaba Augusto Ruschi fez previsões assustadoras. Previa a transformação do norte capixaba “num deserto verde”, como entendia a presença do eucalipto na região, como também no surgimento de novas doenças. Quilombolas, como os Florentino, que permaneceram em suas propriedades, iam sendo cercados pelos eucaliptos. Novas doenças foram chegando para eles.    O tronco principal da família, Tolentino, no Córrego de Santana, o glaucoma, como se fosse uma doença epidêmica, chegou ao pai de Berto, o Manoel, a três irmãos dele e a duas irmãs. Todos ficaram  cegos.

O glaucoma surgiu com tal intensidade na região que as estatísticas do então INPS de São Mateus acusou um aumento assustador. Passou a representar 13% no ranking das doenças locais. Foi recebido com espanto pelo corpo médico, pois só havia atingido negros e que moravam em comum com o eucalipto. Apesar da recomendação de uma pesquisa para detectar o fenômeno, ela não foi realizada. E ainda transferiram da região o médico que estava reunindo elementos para elaborar a pesquisa.

Mas a cegueira não chegou para Berto, que reside em área distante do seu pai e dos tios. Sua propriedade fica no Córrego de São Domingos, onde o glaucoma também não deixou de fazer suas vítimas. A presença do eucalipto também inviabilizou totalmente a agricultura. Até a resistente mandioca sucumbiu. Na falta da agricultura, eles se voltaram para o carvão e venderam parte de suas terras para a Aracruz para saldar dívidas e tratar das novas doenças. Disso não escaparam os Tolentino, inclusive Berto. Reduziu-se de oito alqueires para três hectares a sua propriedade.

“Tinha que dar de comer a 17 bocas (ele tem 17 filhos e 28 netos) e a vida aqui não dá mais para plantar”, diz Berto, acrescentando que o terreno não dá mais nada, praticamente. “O jeito é destruir os pulmões nas carvoeiras e ainda ter que enfrentar a polícia, dizendo que roubamos eucalipto, quando estamos pegando o lixo do eucalipto. As partes que não servem para industrializar. Não imagina como me revolta ver os eucaliptos ocupando a terras, que no passado fizeram felizes os nossos velhos.”

Mas nem todos os quilombolas têm ainda a clareza do Berto e a disposição para lutar pela retomada do seu território. Vivem a brutalidade da vida que lhe oferecem: a marginalidade de catar o lixo do eucalipto para fazer carvão, sujeitando-se às violências da  milícia privada da Aracruz e da Policia Militar.

Para quem assiste de fora a essa contenda entre a Aracruz e Berto sabe que o importante era que os quilombolas pudessem cercar o tigre. Mas o tigre se movimenta à vontade, consumindo quem satisfaz ao seu apetite. A imagem do tigre pode não ser apropriada quando a Polícia Militar, em favor da empresa, faz uma operação de guerra para prender Berto e familiares. Pois vai muito além da voragem de um simples tigre, tratando-se de uma transnacional que impõe fome e desemprego às comunidades quilombolas.

Após a essa  megaoperação  militar para prender Berto, o semblante dos quilombolas, antes tudo, é de indignação e de raiva. Quanto ao Berto, ele está consciente do perigo que lhe está reservado e disposto a enfrentá-lo.  Sabe controlar o seu coração, para ajudar a tirar  filhos, netos, genros, amigos, da linha de miséria que foi imposta pela Aracruz. Está disposto a passar por cima do abismo.

Neste sábado mesmo (14/11), ele já estava na boca de forno fazendo  carvão. “É, como disse, o que restou para o sustento de suas famílias.” Não tenho mais idade para isso (64 anos), mas é o que tenho para tocar, mas que não me impede de sonhar de ver os netos, já que não posso mais desejar para os filhos,  felizes, plantando, colhendo, fazendo seus bijus e vivendo a vida feliz do tempo dos meus pais e dos meus avós.”

Ele disse que até agora não conseguiu tirar da sua cabeça a frase do sargento Luiz de que tinha roubo dentro de sua casa, pois. em matéria de roubo, ele disse que só cometeu um em todos os seus 64 anos de vida. Foi quando roubou a sua mulher da casa dos pais. Ele com 17 anos, ela com 15, e nem os pais dela queriam o casamento, muito menos com ele. O jeito foi combinar com ela uma fuga pela madrugada. Encostaria o cavalo na janela do seu quarto, com a garupa voltada para a janela de jeito que ela pudesse montar.

Dali foi para uma mata fechada, armou uma barraca e ali passou a lua de mel: “Esse é o único roubo da minha vida”.

Berto é um negro dos olhos rajados, rosto bem torneado, uma boa altura, forte de corpo, e que sempre tirou suspiros do mulheril. Muita mulher bonita foi ao Ticumbi para vê-lo em seus movimentos corporais e rodopios sedutores. Essa é a outra face desse negro que está a enfrentar uma transnacional de peito aberto, disposto a ir às ultimas consequências na defesa da história do seu povo: “Eu queria ver um dia esses homens da Aracruz na minha frente sem a polícia. Ia ser muito bom para a nossa raça.”

(Por Rogerio Medeiros, Século Diário, 14/11/2009)


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