A operação da Polícia Militar de Vitória que prendeu 28 quilombolas na manhã dessa quarta-feira (11/11), em Córrego de São Domingos, no município de Conceição da Barra (ES), objetivou criminalizar o movimento quilombola e atingir a integridade de suas lideranças, segundo o subsecretário do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Perly Cipriano. Perly entende que, com tanta violência no Estado, nada justifica a mobilização de mais de cento e vinte policiais fortemente armados contra trabalhadores quilombolas.
“Os quilombolas são vítimas. Eles lutam por direitos e estão ali fazendo apenas seu trabalho. A mobilização tão grande da polícia com pessoas pacíficas não se justifica, principalmente em um Estado com tanta violência. Esse povo luta por seus direitos, por seu espaço que foi invadido por não quilombolas e que agora é obrigado a sofrer com a repressão”, ressaltou o subsecretário.
Essa não foi a primeira vez que se invade a casa de Berto Florentino, integrante do grupo Ticumbi de Conceição da Barra e uma das mais importantes lideranças quilombolas da colheita de sobras de eucalipto, utilizadas para a produção do carvão que garante o sustento das famílias da região após a ocupação de suas terras pela ex-Aracruz Celulose (Fibria).
Berto já foi vítima de diversas ameaças, inclusive denunciadas pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos. Segundo o Conselho, ele estaria marcado para morrer pela ex-Aracruz Celulose, em conluio com policiais. Além disso, sua casa já foi invadida anteriormente por duas vezes, ambas com truculência, com o uso, inclusive, de violência para quebrar móveis e assustar a família.
Desta vez, a PM usou da mesma tática. A informação é que nenhum quilombola preso foi encontrado nas áreas de eucalipto. Todos foram “buscados” em suas residências com a ajuda da Garra, segurança particular da Fibria, acusada também de agir com violência contra o povo negro. A ação da polícia estava tão bem ensaiada, segundo a comunidade, que a tropa já chegou à região classificando a família do líder negro como uma quadrilha.
No norte, praticamente todos os negros quilombolas vivem da cata de resíduos de eucalipto, mas as ações da PM somente ocorrem na região de Berto, que se mantêm firme na luta contra a usurparção das terras quilombolas pela ex-Aracruz Celulose. Na ação desta quarta-feira (11), até seu filho cego e sua neta, que questionou a ação da polícia, foram atingidos. “O filho cego de Berto foi levado algemado e a neta que questionou o uso de tanta violência para prender os quilombolas em um município com tantos crimes impunes, foi agredida por uma policial”, contaram eles.
Os quilombolas só foram soltos à noite da quarta-feira (11), por um pedido do governador do Estado, Paulo Hartung, após forte pressão de políticos e representantes do Conselho de Direitos Humanos. Ainda assim, denuncia Cláudio Vereza em seu Twitter, a ordem não vem sendo cumprida e um número não divulgado de quilombolas ainda está preso. Além disso, cinco camburões da PM são mantidos na área quilombola como forma de repressão à comunidade.
“Esse povo perdeu seu espaço e ainda sofre repressão. Precisamos de políticas públicas! É necessário que eles tenham suas terras de volta e para isso é preciso apoio à esta luta. E uma instituição que joga um contingente tão grande de policiais contra uma comunidade pacífica está sendo injusta”,desabafou Perly Cipriano. Segundo ele, o Secretário Estadual de Justiça, Ângelo Roncali, e a ouvidoria da Secretaria de Promoção da Igualdade Social (Sepir) já foram informados dos fatos. Como resposta, foi feita a promessa de que a legalidade da ação será investigada.
Entretanto, alertam os quilombolas, é exatamente a falta de investigação a responsável pelos atos abusivos da ex-Aracruz Celulose, da Garra e da própria Policia Militar. Ressaltam que o ato ocorrido nesta quarta não foi o primeiro e nem o segundo a ocorrer, e que em maio deste ano os abusos contra os quilombolas foram denunciados à subsecretária de Inteligência da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp), Fabiana Maioral , que prometeu investigar. Mas até agora nada foi feito e a repressão na região continua.
Direitos humanos
A violência da PM chamou a atenção do Ministério Púbico Federal (MPF), que, através da Procuradoria da República do município de São Mateus, informou que investiga se houve violação de direitos humanos no norte do Estado. O caso está sob a responsabilidade dos procuradores da República Júlio de Castilhos e Leandro Botelho Antunes.
Segundo as investigações, a PM chegou à comunidade de São Domingos por volta das 9h, com cavalos e cachorros e com um mandado de busca e apreensão relativo a suspeitas de furto de madeira. O mandado, expedido pela Justiça estadual, teve como base uma representação do 3° Pelotão da 5ª Companhia Independente da PM, com sede em Conceição da Barra, e era direcionado a nove pessoas. O endereço para as buscas e apreensões fornecido genericamente foi o da comunidade de Córrego de São Domingos.
De acordo com o procurador da República Júlio de Castilhos, os quilombolas foram detidos sem que para isso houvesse um mandado de prisão e não foram informados sobre o motivo da operação. Além disso, foram transportados sem justificativa do município de Conceição da Barra para São Mateus. Após serem ouvidos pela polícia, foram liberados sem ter como retornar para suas casas, e ficam cerca de 40 km de distância. Os quilombolas só retornaram após pedido do MPF à prefeitura, que providenciou um ônibus. Antes disso, o MPF solicitou a um dos comandantes da ação, major PM Marcos Assis Batista, que providenciasse o retorno dos quilombolas, mas não obteve resposta.
Reação
“É inadmissível que a PM continue a agir como segurança da Fibria, numa fragrante promiscuidade entre Estado e iniciativa privada”, afirmou a deputada Iriny Lopes (PT), em seu Twitter. Segundo ela, a cena é recorrente e vergonhosa e se configura como farsa. A mesma farsa ocorrida, inclusive, com os índios anos atrás sob a mesma alegação: furto ou derrubada de eucalipto “em área da empresa”, diz a deputada.
Segundo Iriny, “não é demais lembrar que índios e quilombolas são naturais dessas terras, hoje ocupadas pela Fíbria, adquiridas em processo duvidoso e, portanto, objeto de pedido de regularização junto ao Incra e à Funai, processo já reconhecido no caso dos índios”.
Ela questionou sobre quem é mesmo o criminoso desta história, ressaltando mais uma vez a ação da PM para defender a iniciativa privada e desrespeitando cidadãos. A deputada também cobrou rigor do MPF para que sejam identificados os autores das violações de direitos dos quilombolas.
Segundo a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), a ex-Aracruz Celulose plantou eucalipto durante mais de 40 anos em uma vasta região do Estado, forçando as comunidades rurais e tradicionais à indigência de uma vida com direitos restringidos. A ONG denuncia ainda que os quilombolas mantidos nas delegacias podem estar detidos em celas ou separados dos demais detentos.
”As casas simples das comunidades foram invadidas. Cachorros e cavalos foram usados para criar um clima de tensão. A polícia foi vista retirando crianças do ônibus escolar que as leva diariamente para as aulas, expondo os filhos e filhas dos quilombolas a um forte abalo emocional longe de seus pais. Equipamentos e pertences dos quilombolas de São Domingos foram indevidamente apreendidos. A investigação policial formal, se é que existe, não teria apresentado documento com ordem de apreensão, e menos ainda uma convocação para depor. A retirada à força de dezenas de cidadãos para prestar depoimentos, portanto, se configurou como mais uma arbitrariedade contra um grupo social vulnerável no Espírito Santo”.
Para a Fase, a questão da madeira residual dos eucaliptais da ex- Aracruz Celulose não pode ser tratada como problema penal comum. Trata-se de uma questão política, pois, quando as comunidades tiveram seus territórios usurpados por uma corporação multinacional, que ali plantou uma das maiores monoculturas de eucalipto do mundo e com isso degradou as condições de agricultura e de vida rural em toda uma região, não houve alegação de crime contra aquelas pessoas, embora seja mais que clara a violação extrema de seus direitos.
Além disso, o resíduo com o qual os quilombolas produzem carvão para vender a baixíssimos preços não lhes serve de nada. “O processo produtivo da empresa não é diretamente afetado por isto, daí cabe perguntar: por que mais pressão sobre uma população já tão vulnerável?”, questionou a Fase.
Para o subsecretário Nacional de Direitos Humanos, Perly Cipriano, o reconhecimento dos direitos quilombolas é necessário e significa apenas uma pequena parcela de reparação por tudo que foi feito contra estas comunidades ao longo de anos em todo o País. “A riqueza deste país foi construída por este povo. Povo de que somos descendentes e que hoje vive reprimido”.
Viver como quilombola no norte do Espírito Santo hoje significa não ter condições de sobrevivência em parte dos casos, e quando há são condições frágeis e dependentes da solidariedade de atores sociais organizados, como a Fase e outras pessoas e entidades amigos dos quilombolas e indígenas do estado. Para os apoiadores da luta, “é necessário o entendimento de que a retirada de resíduos de eucaliptos diz mais sobre como todos foram incapazes de preservar a vida desta população do que sobre o cometimento de um delito penal”, diz a Fase.
(Por Flavia Bernardes, Século Diário, 12/11/2009)