A Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem a público expressar a sua profunda preocupação quanto à forma precipitada com que vêm sendo conduzidas as discussões e encaminhamentos oficiais sobre a projetada hidroelétrica de Belo Monte, inclusive contrariando estudos técnicos e procedimentos legais estabelecidos.
Uma comissão de estudiosos e especialistas de diferentes formações, após realizar estudos de campo minuciosos, chegou à conclusão de que os impactos sobre os povos indígenas da região não se limitam de maneira alguma à chamada “área diretamente afetada”, mas podem atingir seriamente os recursos ambientais e as condições de vida e bem estar de outras terras indígenas, situadas fora daquela faixa estrita. Nas terras indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande/Maia, Juruna Km17, Apyterewa, Araweté, Koatinemo, Kararaô, Arara, Cachoeira Seca e Trincheira Bacajá habitam diversas coletividades cujos modos de vida e culturas poderão receber impactos negativos, sem mencionar indígenas que estão nas cidades e os índios isolados.
Mais grave ainda é que até o presente momento sequer tais impactos estão adequadamente dimensionados (vide documento elaborado por Painel de Especialistas, com o apoio da Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) de Altamira, do Instituto Sócio Ambiental (ISA), da International Rivers, do WWF, da FASE e da Rede de Justiça Ambiental).
Os estudos técnicos conduzidos por especialistas da própria FUNAI resultaram em um parecer (vide Parecer Técnico n° 21 – Análise do Componente Indígena dos Estudos de Impacto Ambiental, de 30 de setembro de 2009) que atrela a viabilidade da obra ao cumprimento, entre outras, de três condicionantes básicos: 1) que se defina uma vazão mínima (“hidrograma ecológico”) que garanta a sobrevivência dos peixes e quelônios e a navegabilidade das embarcações dos povos indígenas que ali vivem; 2) que sejam apresentados estudos sobre os impactos previstos no Rio Bacajá, na beira do qual vive o povo Xikrin, que possivelmente sofrerá graves alterações (a serem melhor analisadas); 3) que sejam estabelecidas garantias efetivas de que os impactos decorrentes da pressão antrópica sobre as terras indígenas serão devidamente controlados.
Segundo o EIA, serão atraídos para a região pelo menos 96.000 pessoas, o que agravará a pressão sobre os recursos naturais das Terras Indígenas (TIs) – que já é critica na região por conta de outras obras previstas, como a pavimentação da Transamazônica BR-163 e a construção da linha de transmissão de Tucuruí a Jurupari. O aumento populacional que o empreendimento trará afetará também as comunidades indígenas porque incentivará um consequente aumento da pesca e caça ilegal, da exploração madeireira e garimpeira, de invasão às TIs e de transmissão de doenças.
A FUNAI, supostamente baseada nestes argumentos, através de um sumário ofício de 13 linhas, datado de 14/10/2009 e dirigido ao presidente do IBAMA, assinado estranhamente em matéria de tal importância pelo seu presidente-substituto, emitiu um parecer favorável à viabilidade do projeto. Sem a necessária integração de órgãos e políticas públicas, onde caberia à FUNAI assumir uma função ativa de coordenar, fiscalizar e normatizar, e não apenas de encaminhar informações técnicas, a execução do projeto corre o risco de não mitigar os efeitos lesivos do empreendimento e não fazer cumprir as condições de salvaguarda dos interesses indígenas.
Tal posicionamento, ao abrir mão de sua prerrogativa enquanto agência indigenista oficial, na realidade tornou secundárias, e quase inócuas, as ressalvas constantes no Parecer Técnico quanto à insuficiência de estudos sobre os impactos da obra nas terras indígenas, bem como junto aos índios isolados e também sobre os residentes em Altamira. Mais grave ainda é que, contrariamente ao citado Parecer, que agrega diversos anexos com demandas indígenas por esclarecimentos e alterações no projeto, recomendando explicitamente a oitiva das comunidades indígenas, o oficio 302/FUNAI considera que já foram cumpridos os dispositivos necessários no tocante a tais oitivas.
Devemos, aqui, destacar dois pontos essenciais desta questão. Primeiro, é fundamental observar que os encaminhamentos e decisões relativas à UHE de Belo Monte estão descumprindo uma disposição legal, a Convenção 169, amplamente acatada no plano internacional e já incorporada pela legislação brasileira – a de que as populações afetadas sejam adequadamente informadas sobre o empreendimento e todas as suas conseqüências, exigindo-se que sejam antecipadamente consultadas e segundo procedimentos legítimos e probos.
Uma manifestação do cacique Raoni, em 14/10/2009, evidencia que o imprescindível diálogo e interlocução sobre o assunto é ainda bastante insuficiente, pois esta liderança exige a presença de autoridades para informar e discutir o projeto. Em caso contrário, ele adverte, os Kayapó irão proceder ao fechamento do serviço de balsas para travessia do rio Xingu, com a interrupção do trânsito na MT-322 (antiga BR-80), entre os municípios de Matupé e São José do Xingu (MT). Em 26/10 foi divulgada uma manifestação de repúdio das lideranças Kayapó ao posicionamento da FUNAI, convocando para a realização de uma grande assembléia nas cabeceiras do rio Xingu.
A compreensível resistência dos indígenas, que foram até agora desconsiderados enquanto parte do planejamento e do processo decisório, poderá deflagrar conflitos de grande monta, quando a vida dos próprios indígenas e de funcionários governamentais estarão em risco, bem como o patrimônio e a segurança de terceiros poderão ser também duramente atingidos. Novas campanhas difamatórias contra os direitos indígenas virão alimentar-se de acontecimentos deploráveis resultantes do açodamento, omissão e descumprimento das normas legais cabíveis.
Segundo, a conceituação de “área de impacto” não pode se restringir ao seu componente técnico, ignorando as variáveis socioculturais. A definição de uma área de “impactos diretos”, feita exclusivamente por engenheiros e especialistas mobilizados por instituições interessadas no empreendimento, não pode, de maneira alguma, substituir uma avaliação isenta, de natureza sociológica e antropológica, das conseqüências que o projeto trará para as populações que habitam na região, e não apenas em uma faixa restrita dela. O que exige investigações circunstanciadas sobre as condições ambientais e socioculturais, presentes e futuras, que afetarão o bem estar e o destino das populações estabelecidas na região.
Cabe alertar a opinião pública e as autoridades máximas do governo brasileiro para a precipitação com que tem sido conduzida a aprovação do projeto, dentro de uma estratégia equivoca e sem atenção aos dispositivos legais. A prosseguir assim se estará configurando uma situação social explosiva e de difícil controle, o empreendimento podendo acarretar consequências ecológicas e culturais nefastas e irreversíveis.
(Por João Pacheco de Oliveira, ABA / EcoDebate, 05/11/2009)