Você saberia medir o valor do canto do sabiá que inunda seus ouvidos pela manhã com uma melodia capaz de tocar sua alma no ponto mais sensível? Ou já parou para ver a perfeição com que o João de Barro repete, geração após geração, a construção de seu ninho? Maravilhas como essas estão todos os dias à nossa volta. Pelo chão, um pouco acima, talvez na ponta de um telhado, mais acima, ainda, no galho de uma árvore. Mas é certo que estão por perto, à disposição de nossos sentidos, muitas vezes perdidos entre outros sinais mais urgentes. Mas, se você fechar os olhos por alguns instantes e quiser percebê-las, pode ter certeza de que estarão a sua disposição. São presentes da natureza, que exigem só um pouco de sensiblidade para serem descobertos e apreciados.
Certo dia, William Belton deve ter fechado seus olhos por alguns segundos. E logo depois deve tê-los abertos para começar a viver uma experiência que nunca mais se cansou de repetir. Tornou-se um enfeitiçado pelos pássaros, a ponto de se transformar em um ornitólogo. O voejar dessas criaturas de belas formas e cores, o som que trespassa o ar para ganhar o homem, a pesquisa de seus hábitos, a descoberta de como podem surpreender a cada dia levaram Belton definitivamente para o interior da natureza e o fizeram um dócil e voluntário prisioneiro para sempre.
O obituário da edição de ontem do jornal norte-americano The New York Times registra a morte de William Belton no último dia 25 de outubro, aos 95 anos, em Great Cacapon, nos Estados Unidos. Escrito assim parece nada, um registro irrelevante. Mas esses 95 anos foram de atividades muito importantes e de amizades que atravessaram décadas e, mesmo à distância, continuaram por cartas e mais recentemente com o auxílio da internet. Assim, um homem calmo pela própria natureza de observador atento viu extinguir-se pela doença, aos poucos, sua vida. Mas a obra desse cientista que, por diversos caminhos, veio dar no Estado e por aqui desenvolveu estudos relevantes sobre os pássaros do Rio Grande do Sul, estava garantida.
Há outros, mas um dado numérico é suficiente para posicionar o trabalho de Belton no Brasil: até a chegada dele como ornitólogo, em 1970, a bibliografia registrava 36 títulos conhecidos nos 86 anos anterioes. De lá até o ano 2000 este número cresceu em 806 títulos, 70 deles na década de 70, o período de presença forte do autodidata norte-americano. Esse avanço é como um salto que alguém desse do extremo sul ao extremo norte do país.
Essa contagem foi feita por Walter Voss, hoje um senhor aposentado de 76 anos, que teve sua própria vida mudada pelo estágio brasileiro de Belton. De trabalhador na indústria mecânica, transformou-se em profissional das aves, desenvolvendo por anos atividades de pesquisa. O que era objeto de sua curiosidade e prazer virou um trabalho sério. Walter tornou-se amigo do mestre e um dos maiores conhecedores de seu trabalho.
Geração se espelhou no pesquisador
Bem, mas isso é um número, poderá alguém pensar. Isso é um engano. Estudar aves – pássaros ou não – é de enorme importância. Não se trata de sentar-se ao chão e enlevar-se com a musicalidade de algum passarinho bonito. Um exemplo rápido: quando estourou a gripe aviária na Ásia, que colocou o planeta em estado de alerta, o estudo sobre as características das aves silvestres, suas rotas de migração e seus habitats preferidos foram essenciais para contornar o problema criado.
O americano de hábitos simples chegou por essas terras como diplomata. Foi cônsul em Porto Alegre em 1946, quando passou por duas sensações diferentes. Uma delas de desolação, ao perceber que não havia companheiro para a sua atividade de observador de aves. A outra de excitação, ao se dar conta da rica fauna da região. Anunciou aos primeiros amigos que voltaria depois de aposentado para se dedicar à atividade. Antes, ainda como diplomata, participou das negociações exigidas pelo episódio do sequestro do embaixador dos EUA no Brasil em 1969, Charles Burke Elbrick. Cumpriu a promessa de retornar ao Estado em 1970 e mudou a ornitologia do país.
Belton desembarcou aqui com uma parafernália inusitada: gravador, telescópios, redes de neblina, guias de campo, marcação de aves, nomenclatura atualizada e outros equipamentos. Realmente, novidades. Estabeleceu-se em Gramado, entrou para dentro de uma Rural Willys e traçou todas as rotas possíveis para cobrir o Rio Grande inteiro. Fez isso por 12 anos. Ao final, o resultado era um levantamento completo. Não só agora se conheciam as espécies como se sabia todos os seus hábitos.
Foi o tempo suficiente para criar o primeiro curso de ornitologia do país, na Unisinos. Até sua chegada havia apenas três cientistas do ramo em todo o Brasil. Em seguida, os alunos e novos interessados fundaram o primeiro clube de observadores. Começava a se formar uma geração de profissionais.
Estava no sangue de Belton ser pioneiro. Aves Silvestres do Rio Grande do Sul é um presente precioso, legado aos futuros apaixonados pelo tema. Estão ali vários representantes mais conhecidos que habitam essas paragens, descritos em linguagem acessível e clara. Ao estilo do autor, que tinha pressa em difundir seus conhecimentos. Como fez em Brasília em mais uma “primeira vez”, um curso de grande repercussão, que juntou gente de muitos Estados. A partir dali, a ornitologia tomou ares de uma ciência aberta, envolvente. Uma ciência de muitos outros nomes ilustres, claro, mas que teve esse desbravador no momento certo.
E tudo começou porque um dia, mesmo antes de lidar com os complexos problemas da política internacional, o diplomata Belton gastou um pequeno tempo de sua vida para ouvir a natureza.
(Por Mauro Toralles, Zero Hora, 06/10/2009)