País extrai produto de areias betuminosas; operação tem elevado custo ambiental e gera tensão
A van segue veloz pela rodovia 63, rumo ao norte. O asfalto perfeito da estrada canadense e a agenda apertada animam o motorista, que acelera - até a hora em que aparece o carro de polícia e manda encostar. O guarda se aproxima, avisa que o limite de velocidade foi ultrapassado, pede documentos e se retira. Mas quando retorna, minutos depois, quebra o script rotineiro: "Você é do Greenpeace, não é?". Essa reação inusitada mostra como a polêmica e rentável exploração das areias betuminosas é um tema delicado no Canadá.
O policial nem espera pela confirmação, quer saber o destino da turma. "Vamos falar com uma anciã", responde Alex Paterson, assessor de imprensa do Greenpeace canadense, referindo-se ao encontro com a líder indígena de uma comunidade vizinha.
"Quem?", continua o interrogatório à beira da estrada. "Porque vão falar com ela?" Desta vez é o fotógrafo Colin O´Connor que reage, com discreta indignação: "Por quê? Por acaso é ilegal?" O policial diz que não, mas está reticente, some de novo, consulta alguém pelo celular e retorna: "Ok, mas vou acompanhá-los."
No norte de Alberta, a província do Canadá que está ganhando todo tipo de fama por abrigar o maior projeto energético do mundo, o que era para ser uma multa por excesso de velocidade se transforma em um comboio policial de três viaturas para escoltar três ambientalistas, um fotógrafo e uma jornalista. É deste jeito que entramos pelas ruelas de Fort MacKay, a pacata comunidade onde vivem, segundo a placa de madeira na entrada, exatas 273 pessoas. Há alguns trailers estacionados e playgrounds de plástico nos jardins. Celina Harpe, de 70 anos, a líder da etnia cree, acena da porta de uma casa verde, na beira do rio.
O incidente demonstra que em Wood Buffalo, o maior município canadense, a tensão está no ar - assim como o forte cheiro de ovo podre, uma característica da presença de ácido sulfídrico. Ambientalistas e indígenas estão em pé de guerra com o governo e empresas petrolíferas do mundo todo. Não há consenso nem sobre o nome da confusão.
Os verdes chamam a área de "Tar Sands" (areias de piche ou areias de alcatrão), algo que soa ruim. Governo e empresas rejeitam essa denominação e adotam um termo que julgam mais neutro e promissor. "O nome adequado é 'Oil Sands´" diz por e-mail Kevin Stringer, diretor-geral do Petroleum Resources Branch, um braço do Ministério dos Recursos Naturais do Canadá.
Há um mês, na véspera do encontro entre o primeiro-ministro canadense, Stephen Harper, e o presidente dos EUA, Barack Obama, 25 ativistas do Greenpeace entraram na mina Albian, da Shell, pararam por várias horas a produção e penduraram faixas gigantes: "Tar Sands: Climate Crime". É um crime climático, além de causar dano a recursos naturais e à saúde das pessoas, dizem ambientalistas.
Mas a trajetória da vizinha cidade de Fort McMurray, mostra o outro lado da história. Seria só mais um local caipira do norte canadense não fosse a extração do tal do "betume". É evidente que se trata de um centro superaquecido. A população, de 66 mil habitantes, dobrou em dez anos, e o preço das casas triplicou. Motoristas solitários dirigem aqueles jipões enormes. No pequeno aeroporto, cartazes fazem propaganda de empresas de petróleo. Tem muito trabalho naquele pedaço do mundo.
Por ali, enterrado sob a bela floresta boreal, há um enorme campo de areias petrolíferas. É uma mistura de areia, argila, água e um petróleo bruto muito pesado conhecido por betume. O problema começa em como tirar o betume do solo e como separá-lo do resto - sem mencionar que se trata de um combustível fóssil dos mais sujos.
Existem dois métodos de extração, dependendo da profundidade da jazida. Cerca de 20% dos campos estão próximos da superfície, e o betume é extraído em mineração aberta. É preciso arrancar a floresta, remexer a terra, retirar água do rio e formar imensas lagoas. No outro caso, o betume é retirado com o bombeamento de muito vapor. A extração é cara, exige alto consumo de água e de energia e o resultado final não é um petróleo de grande qualidade. Mas a questão não é essa: as jazidas de betume de Alberta são imensas.
A primeira petroleira a chegar, nos anos 60, foi a canadense Sincor. Uma década depois veio outra canadense, a Syncrude. Por muitos anos a operação ficou nisso, restrita a essas duas. Era muito caro separar o óleo da areia. Mas o preço do petróleo subiu, a tecnologia avançou e a extração do betume explodiu em Alberta. Em abril de 2008 havia 91 projetos ativos na região. A produção diária atual é de 1,3 milhão de barris e deve saltar para 3,3 milhões em 2025.
Os números da indústria são gigantescos. Em 25 anos, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Energética do Canadá, as areias betuminosas podem agregar US$ 1,8 trilhão ao PIB do Canadá e criar 456 mil empregos. Esse petróleo do solo já torna o país o segundo maior produtor do mundo, perdendo apenas para a Arábia Saudita. Desde 2001, o país é o maior fornecedor de petróleo aos EUA, desbancando os sauditas.
No site da Syncrude há dados impressionantes: os três depósitos de petróleo de Alberta (Athabasca, Cold Lake e Peace River) poderiam suprir a necessidade energética do Canadá por 475 anos ou toda a demanda mundial por 15. O potencial pode ser cinco vezes maior que as reservas sauditas. "As areias de petróleo são uma das pedras fundamentais da economia de Alberta e do Canadá", diz Don Thompson, presidente da Oil Sands Developers Group, entidade que reúne as petroleiras.
Acontece que o outro lado desta moeda é muito sinistro. O Canadá está na contramão de todos os esforços internacionais de reduzir os gases de efeito-estufa e combater o aquecimento global. O país assinou o Protocolo de Kyoto, mas não só não cumpriu o corte que havia prometido fazer como aumentou as suas emissões. Segundo o relatório "energy [r]evolution", do Greenpeace-Canadá, as emissões de gases-estufa do país eram 592 milhões de toneladas em 1990 e viraram 721 milhões em 2006 - um aumento de 21,7% sobre os níveis de 1990 e de 29,1% sobre as metas do país em Kyoto.
"O Canadá é um fora-da-lei internacional" diz o jornalista canadense Andrew Nikiforuk, autor do livro " Tar Sands". Segundo ele, cada barril de betume produz três vezes mais gases-estufa que um barril de petróleo convencional. "As 'tar sands' explicam porque o governo do Canadá gastou mais de US$ 6 bilhões em programas de mudança climática nos últimos 15 anos e não conseguiu cumprir nenhuma meta", diz ele.
Nas contas da ONG Global Forest Watch Canada, os moradores da província de Alberta emitiam 71 toneladas de CO2 equivalente (uma medida padrão para os gases-estufa) per capita em 2005, ou quatro vezes a emissão do resto dos canadenses. As emissões per capita ali só perdem para as dos moradores do Qatar. A região tem 10% da população do país e responde por 32% de suas emissões.
A indústria do petróleo corre para desenvolver a tecnologia que sequestrará carbono, a chamada CCS, o que aliviaria a emissão. Alberta está investindo US$ 2 bilhões nisso. "Mas os projetos CCS não ficarão prontos em 2020, e a mudança climática está acontecendo agora", diz, cética, Emily Rochon, "campaigner" de clima e energia do Greenpeace International.
Há outras prováveis consequências da extração das areias betuminosas que arrepiam ambientalistas. Peter Lee, diretor da Global Forest, diz que as reservas de gás natural do Canadá só dão para a extração de 29% do betume. "Serão necessárias 14 usinas nucleares para substituir o gás", estima. "O Canadá será o único país do mundo a usar energia nuclear para produzir combustíveis fósseis" ironiza Melina Laboucan-Massimo, a "Tar Sands campaigner" do Greenpeace.
"Esta atividade não é sustentável para o ar, a água, a saúde, o clima, o direito dos povos indígenas" prossegue. Segundo ela, as indústrias lançam no rio Athabasca 11 milhões de litros de efluentes com mercúrio, amônia, cobre e outros metais pesados. Há risco de contaminação dos aquíferos. Para produzir um barril de petróleo, usam três a quatro vezes a mesma quantidade de água.
"Afinal, que tipo de legado estamos deixando às futuras gerações?" questiona. Os depósitos de betume se espalham por 140 mil km2, uma área do tamanho da Flórida. Segundo o Greenpeace, o projeto inteiro mexerá numa área de floresta boreal das dimensões da Inglaterra. Só se tem ideia da proporção do estrago sobrevoando a área.
O hidroavião decola, e os primeiros minutos são de surpresa frente ao belo panorama da floresta. Ali ainda vivem ursos e alces. O grande Athabasca faz suas curvas, pinheiros altos em cada margem. A floresta abraça Fort McMurray. E, de repente, some. Basta o avião superar os limites de Fort McMurray para que as árvores desapareçam de uma só vez. É uma imagem horripilante. O que se vê é um cenário de "Mad Max", só que não é ficção. O mundo parece ter perdido a cor, só há tons de cinza e negro, enormes lagos escuros de águas paradas, canteiros de obras e um frenesi de caminhões.
Don Thompson, da associação das indústrias, diz que já foi reconstituída uma "área grande", mas que "as árvores da floresta levam 80 anos para crescer, e as que plantamos ainda parecem grama. É preciso lembrar que esta indústria só tem 40 anos de idade". Pode até ser, mas o que se vê hoje é desolador. A ativista canadense Maude Barlow, famosa no mundo todo pela luta pela água, chama as minas de Alberta de "Mordor". Para quem não leu o livro e não viu o filme, Mordor é o centro sombrio do Mal no mundo imaginário de Tolkien em "O Senhor dos Anéis".
"Tínhamos água limpa e peixes, era uma vida boa", diz Celina Harpe, a líder cree, que vive com o marido, Edward, numa casa simples em Fort McKay. "Isto foi há 30 anos. Agora o veneno das lagoas está indo para o rio." Ela é interrompida pelo telefonema de um vizinho, que quer saber porque a polícia está estacionada ali em frente. Celina não se intimida. De um armário junto à TV, tira fotos do tempo em que Edward curtia pele de castores no abrigo de madeira que ele mesmo construiu.
Lembra do dia em que as crianças da escola se sentiram mal e tiveram que ser socorridas por ambulâncias. "Foi amônia que vazou, mas nunca nos explicaram nada nem pediram desculpa." O cheiro de ovo podre, emissão da indústria, não dá trégua.
No aeroporto de Fort McMurray, uma loja vende um suvenir curioso: um suporte de madeira com cilindros de acrílico de conteúdo duvidoso, variando do amarelo ao negro. Vem com legenda: areia, enxofre, petróleo cru, betume. Muita gente em Alberta têm orgulho da indústria do petróleo, do trabalho e riqueza ela que gera.
"A gente não quer que as pessoas fiquem desempregadas. Mas temos que batalhar por empregos verdes e pensar em como será a vida dos nossos filhos", diz a bióloga Luana Adário, 23 anos, voluntária do Greenpeace em Manaus e que participou de uma ação da ONG nas instalações da Shell, em Alberta. Roland Woodward, líder cree em Anzac, vive à beira do lago Gregoire. Ali, o ar não cheira mal, mas ele desconfia da água. "Quando era criança as pessoas morriam de velhice, de acidente ou 'matadas'. Agora só se morre de câncer. Até jovens morrem de câncer. É estranho."
(Por Daniela Chiaretti, Valor Econômico / Fórum Carajás, 26/10/2009)