Reduzir o consumo de carne significa pensar na sobrevivência da espécie humana no planeta Terra. O alerta é de João Meirelles, presidente do Instituto de Ecoturismo do Brasil (IEB) e da ONG Peabiru, instituição que mantém o Parque Ecoturístico da Bodoquena, em Bonito, MS. Na entrevista a seguir, concedida, por telefone, à IHU On-Line, Meirelles diz que as discussões em torno do desmatamento, das mudanças climáticas e do aquecimento global devem atacar as causas, e não as conseqüências do problema. Isso significa combater a pecuária bovina extensiva, e não apenas o desmatamento. “O desmatamento não é causa de nada, ele é apenas o sintoma”, enfatiza.
Segundo ele, cerca de 40% da superfície aproveitada do planeta é ocupada pelo gado. No caso brasileiro, adverte, “a situação é muito mais grave porque dos 800 milhões de hectares do país, aproximadamente 200 milhões já são ocupados pela criação de gado”. Enquanto isso, argumenta, “a agricultura não ocupa nem 80 milhões de hectares”.
Meirelles menciona ainda que a Convenção do clima em Copenhague irá discutir apenas as consequências, e que os países que possuem florestas tropicais não têm poder de influência política. “Não tenho nenhuma esperança de que as florestas tropicais irão receber um tratamento especial em Copenhague”, lamenta. E dispara: “Não vejo nenhum movimento sério global de que isso passe a ser tratado com a atenção que merece. O debate de Copenhague está muito mais centrado na questão das cotas de carbono, e isso não chega na questão da proteção das florestas”.
João Meirelles é presidente da ONG Peabiru, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) com a missão de gerar valores para a conservação da biosociodiversidade da Amazônia.
Confira a entrevista.
IHUnisinos - O senhor diz em o Livro de Ouro da Amazônia que a pecuária bovina extensiva destruiu a Mata Atlântica, a Caatinga, consome o Cerrado e agora também está causando problemas na Amazônia. Nesse sentido, como a criação de gado tem contribuído para agravar as mudanças climáticas e a degradação do meio ambiente?
João Meirelles – A pecuária bovina extensiva depois da Segunda Guerra Mundial passou a ocupar uma extensão territorial no planeta muito acima do que é suportável. Hoje, segundo a FAO, cerca de 40% da superfície aproveitada do planeta estaria sendo ocupada pela pecuária bovina. No caso do Brasil, a situação é muito mais grave porque dos 800 milhões de hectares do país, aproximadamente 200 milhões já são ocupados pela criação de gado. Para entendermos a dimensão disso, a agricultura não ocupa nem 80 milhões de hectares. Esse é um fato grave, porque a maior parte territorial do país é destinada para a pecuária de corte.
Outro fator complicado é a mudança da pecuária para o Centro-Oeste e Amazônia. De 1970 para cá, existiam um milhão de cabeças de gado na Amazônia e hoje são 80 milhões e, se nada for feito, teremos 200 milhões de cabeças em menos de duas décadas. Essa é a grande preocupação. Houve um esvaziamento nos antigos estados tradicionais de produção de gado (Rio Grande do Sul e Santa Catarina) para a Amazônia, porque lá a lei não vale, e as questões ambientais, sociais e trabalhistas não são seguidas, o que gera um custo de produção muito menor.
A pecuária é uma péssima decisão da humanidade na medida em que é a proteína mais cara de se produzir e a que ocupa mais espaço territorial. Mais da metade da população do planeta não tem acesso à carne por questões de custo, mesmo quando os custos ambientais e sociais não são consideráveis. Então, temos um problema sério no planeta Terra, e não um caso específico na Amazônia.
Desmatamento
O desmatamento é um sintoma, é como medir a febre. Então, quando o governo se manifesta sobre o índice de desmatamento, ele está dizendo que “o doente está com febre”, mas ele averigua as causas. Hoje é reconhecido por diversos documentos científicos e técnicos que a pecuária bovina extensiva na Amazônia corresponde a mais de 85% do desmatamento. A soja é insignificante, não chega a 5%, e todas as outras causas juntas não somam 10% (garimpo, abertura de estradas, uso irracional da madeira). Então, o desmatamento não é causa de nada, ele é apenas sintoma.
Por isso, não faz sentido combater o desmatamento. É ridículo tratar disso. Temos que averiguar porque a pecuária bovina está seguindo para a Amazônia, por que as pessoas querem consumir mais carne. Essa é a grande questão que temos de atacar; não é um tema isolado da Amazônia, é um problema mundial.
O Brasil está decidindo se será o maior exportador de carne. Essa é uma decisão de consequências enormes e não é compatível com o discurso de que precisamos conservar a Amazônia, buscar a sustentabilidade. A produção da pecuária bovina na Amazônia não chega a 100 quilos de carne ao ano por hectare. Qualquer criação de peixes chegaria a uma tonelada, tranquilamente. Isso mostra que não tem sentido ocupar 70 milhões de hectares da Amazônia para a pecuária bovina.
Alguns alegam que a criação de gado corresponde apenas a 17% da floresta, mas essa área corresponde à soma dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Então, é uma área absurda em termos de país. Tudo isso para que? Para produzir carne de baixa qualidade, clandestina? Essa é a discussão que deve permear os debates no Brasil, e não discutir se o desmatamento aumentou ou diminuiu; isso é conversa de bar.
Em que medida a substituição da floresta por pastos contribui para o aquecimento global?
Meirelles – O desmatamento ocorre numa sequência de três, quatro anos. As queimadas se sucedem por muitos anos e não exclusivas da Amazônia. Sabemos que, no Brasil todo, durante a seca, acontecem queimadas. Essa é uma prática barata de limpeza do pasto e preparação de área agrícola e urbana. O acúmulo de CO2 é sério, o Brasil deve queimar por ano de 60 a 80 milhões de hectares. O boi em seu processo ruminante libera bastante metano, mas quando juntamos um rebanho global de 200 milhões de cabeças e a importância do gás metano no aquecimento global, percebemos que, no fim das contas, o Brasil contribui com 5 ou 6% do aquecimento global. A maior parte dessa responsabilidade não vem das indústrias, das termoelétricas ou dos carros, e sim do desmatamento, das queimadas e da geração de metano do gado bovino.
O fato de existir pastagem aumenta brutalmente a quantidade de térmitas das formigas e dos cupins. A proliferação desses animais aumenta também a digestão da matéria vegetal, o que eleva também a quantidade de metano gerado por formigas e cupins. Então, não estamos fazendo essas contas. Pensamos apenas na porcentagem desmatada, enquanto o importante é considerar os 60 milhões de hectares queimados, os 200 milhões de bois que geram metano e a quantidade de pasto que também gera uma quantidade de metano apreciada.
Os números revelam que a cota brasileira mundial estaria em torno de 70% e viria do desmatamento, das queimadas e estaria relacionada diretamente à criação de gado. Assim, podemos observar o mau uso da terra pela pecuária bovina extensiva na Amazônia como a principal causa da contribuição brasileira para o aquecimento global. Esta é uma verdade aceita, embora os números não sejam precisos.
O gado e a opção brasileira
Não há dúvidas de que 70 milhões de hectares de desmatamento na Amazônia é uma burrice. Se isso está contribuindo com 1%, 2% ou 5% para o aquecimento global, não é tão relevante para o debate. O importante é saber se o Brasil continuará transformando a Amazônia num pasto. Queremos que o país se torne apenas um exportador de carne barata? Como a humanidade sobreviverá num mundo onde tem mais espaço para boi do que para pessoas? Essas são as questões relevantes que vão nortear questões menores. Para a Amazônia, o importante é saber o que o país quer desse local.
Com certeza, o elemento boi na Amazônia é muito recente, e não paramos para discutir os impactos disso. Os beneficiários desse processo são muito poucos: 20 mil famílias se beneficiam da pecuária, o que é muito pouco dentro de um cenário local de 25 milhões de habitantes. Se analisarmos toda a criação de boi, encontramos mais 400 mil famílias. A maioria se tivesse outra opção, viveria de outra atividade.
É possível contornar essa situação sem prejudicar a criação de gado, ou, de fato, o consumo terá que ser reduzido? Alteração de hábitos de consumo pode favorecer as mudanças climáticas? Qual é sua proposta nesse sentido?
Meirelles – Quando a sociedade vegetariana e o movimento vegetariano mundial fala em não comer carne uma vez por semana, como a campanha de não comer carne nas segundas-feiras, estão tratando da nossa sobrevivência enquanto espécie humana no planeta Terra. A FAO alerta que 40% da superfície do planeta está sendo ocupada pela pecuária, e isso avança rapidamente a 2% ao ano.
Alguns ambientalistas propõem a certificação de carne bovina nos supermercados. Em que medida isso pode ajudar a reduzir o desmatamento na Amazônia?
Meirelles – Essa é uma medida interessante, mas não terá impacto nenhum no desmatamento. Primeiro, porque o boi transita ilegalmente no Brasil; segundo, porque mais de 70% do gado da Amazônia é irregular e ilegal. Isso vai resolver o problema de culpa das classes altas e médias, mas não resolve o problema de fato. Esse seria um processo sofisticado, mas não temos tempo, não temos mais 30 anos para esse processo ser implementado. São necessárias medidas mais radicais. Se estão proibindo o cultivo de cana-de-açúcar na Amazônia, por que não proibir também a pecuária em diversas áreas da floresta? Por que aceitar que os frigoríficos sejam fechados no Rio Grande do Sul e abertos na Amazônia? Isso não faz sentido; está distante do mercado consumidor e inviabiliza uma economia tradicional local.
Qual a importância das florestas para amenizar os impactos das mudanças climáticas? Elas devem ganhar destaque na convenção do clima em Copenhague?
Meirelles – Para que haja o desmatamento zero, são necessários desincentivos muito fortes sobre a pecuária. Temos que atacar as causas; continuamos a conversar sobre consequências. Copenhague está discutindo consequências que interessam a outros países e fazem pouco sentido para o Brasil. A maioria dos 90 países que têm florestas tropicais é pobre e sem poder de influência política. Não tenho nenhuma esperança de que as florestas tropicais irão receber um tratamento especial em Copenhague. Temos que lembrar que as florestas tropicais ocupam 4% do planeta Terra, já ocuparam 9%. Perdemos desde a Segunda Guerra Mundial metade das florestas tropicais. Não vejo nenhum movimento sério global de que isso passe a ser tratado com a atenção que merece. O debate de Copenhague está muito mais centrado na questão das cotas de carbono, e isso não chega na questão da proteção das florestas.
É claro que mecanismos como esse do REDD serão importantes, mas sozinhos eles não fazem diferença. Precisamos de políticas mais contundentes, e o Brasil tem cerca de 30% das florestas tropicais do planeta, e, então, ele tem uma responsabilidade maior sobre isso. No entanto, a política pública brasileira é muito conflitante. Por um lado, se tem um incentivo a grandes estradas, hidrelétricas e uma série de grandes obras com baixo nível de debate e, ao mesmo tempo, um discurso ambientalista sem muito resultado. Então, diria que estamos no pior momento da nossa história ambiental.
Qual é sua proposta de movimento sustentável para combater as mudanças climáticas e amenizar os impactos do aquecimento global?
Meirelles – Teria que haver uma mudança radical no consumo. As pessoas precisam reconsiderar o seu consumo de carne. Não estou dizendo que todos devem virar vegetarianos, mas é necessário diminuir brutalmente o consumo. O consumidor também precisa passar a exigir a origem dos produtos, não só da carne, mas do arroz, enfim. Temos que fazer o movimento do quilômetro zero: os habitantes do Rio Grande do Sul devem comer arroz plantado no estado. Não tem sentido comercializar um produto cultivado em Belém do Pará, e andar 8 mil quilômetros. Esse conjunto de ofertas tem que ser repensado globalmente.
A carne é a questão central do Brasil. O espaço da pecuária bovina de 200 milhões de hectares e a baixa produtividade de uma cabeça por hectare ano, o baixo nível de emprego, a ilegalidade desse modelo devem nortear uma discussão no Brasil. Temos um Congresso de pecuaristas, mas precisamos discutir a retirada do boi da Amazônia, do contrário, qualquer outro movimento em relação ao aquecimento global, perda da biodiversidade, violência no campo, desmatamento, queimadas, será irrelevante.
Será possível mudar essa cultura do consumo de carne, ainda mais no Brasil?
Meirelles – A mudança de cultura das pessoas deve partir de uma consciência em relação ao futuro do planeta e da vida. Os alimentos que tomam a maior parte do nosso tempo e o maior custo na nossa vida precisam ser tratados de uma forma clara. Precisamos ter consciência do que estamos consumindo. Na medida em que temos essa consciência, passamos a observar as coisas de maneira diferente. Na hora em que estamos pilotando o carrinho de supermercado, estamos decidindo o futuro do planeta; não é lá em Copenhague. O que comemos define o futuro do planeta.
Existem várias proteínas animais que são mais saudáveis e energeticamente melhores para a produção: enquanto precisa de oito quilos de cereal para produzir um quilo de carne bovina, com metade disso se produz carne de frango, peixes. A questão é repensar. Dizer que o brasileiro não irá se adaptar a reduzir o consumo de carne é uma mentira, porque a cultura é um processo adquirido. Assim, temos duas opções: ou nos adaptamos a mudar com consciência ou seremos obrigados, pelas mudanças climáticas e as pressões mundiais, a mudar.
É preferível que a sociedade mude de forma espontânea, gerando renda, valores e discussões. O planeta não suporta 7 bilhões de pessoas e 40% de sua superfície dedicada à pecuária. Isso é um luxo que atende a uma minoria de menos de 1 bilhão de pessoas. O Brasil ainda tem tempo de jogar o debate para frente, mas, em outros países, essa questão é muito clara.
Nós como consumidores e seres inteligentes temos que olhar para as prateleiras dos supermercados como aquela decisão mais importante da nossa vida. O nosso ato de compra, do que a gente faz muda a história do planeta. É assim que vamos combater o aquecimento global e salvar a Amazônia da irresponsabilidade dos pecuaristas. É no conjunto de atos que reside a nossa força de mudança. Esperar que o pecuarista mude não irá acontecer no prazo em que precisamos. Não podemos nos dar ao luxo de esperar. Precisamos de tratamento de choque, sim. Teríamos que discutir se o brasileiro quer ou não o boi na Amazônia através de um plebiscito.
(IHUnisinos / Amazonia.org.br, 26/10/2009)