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plano diretor de porto alegre
2009-10-26

O arquiteto e urbanista Newton Burmeister teve um papel decisivo na condução dos debates do Plano Diretor de Porto Alegre, aprovado na Câmara Municipal em dezembro de 1999 e que está em vigor desde março de 2000. A lei que passa por sua primeira revisão no Legislativo foi gestada nos anos 1990, quando ele foi por duas vezes secretário do Planejamento municipal. Uma década depois de deixar a prefeitura, Burmeister volta a se manifestar sobre o tema.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o urbanista conta como foi formulado o Plano Diretor e afirma que o adiamento de sua revisão por mais um ano é prejudicial à cidade. O ex-secretário analisa o embate entre os atores que discutem o assunto - poder público, associações de moradores, sindicatos da construção civil etc - e faz reflexões sobre estratégias de desenvolvimento em Porto Alegre.

Burmeister é cético quanto a uma mediação que resolva o conflito criado por novos empreendimentos imobiliários em bairros consolidados. Mas avalia que a homogeneização que pode ocorrer como efeito desta transformação é negativa. “Quanto mais diversificada for a cidade, melhor”, aponta.

Jornal do Comércio - Quando o senhor foi para a prefeitura, já existia a ideia de fazer um novo Plano Diretor para Porto Alegre?
Newton Burmeister -
Não. Existiam inquietações dos movimentos sociais, por acesso à terra e habitação; dos empresários do setor da construção civil, interessados em padrões diferenciados; o problema da mobilidade urbana, que se agravava. E se constituiu um grupo de trabalho para avaliar a atualização do Plano Diretor (de 1979).

Quando foi isso?
Burmeister -
Logo no início da gestão de Tarso (Genro, 1993). Configurou-se a necessidade de se fazer uma reformulação no Plano Diretor. Ao final do governo (1996), entregamos ao prefeito um projeto de lei, que foi enviado à Câmara.

Como foi o debate?
Burmeister -
Houve um processo de mobilização - Cidade Constituinte, Conferências da Cidade - com grande quantidade de eventos técnico-culturais. E houve oportunidade de se opinar sobre o que a cidade queria. Isso não ficou restrito à questão do planejamento urbano, incluiu sustentabilidade, transporte público qualificado. Essas situações foram avaliadas e se enviou à Câmara uma proposta.

Mas o projeto foi retirado.
Burmeister -
No início do governo de Raul Pont (1997) foi retirado da Câmara, porque os diversos atores entendiam que a proposta não estava madura. E se passou o governo Raul discutindo isso, até que o projeto foi enviado à Câmara e aprovado.

Apesar de toda essa discussão, o que saiu da Câmara, em 2000, voltou a inquietar a cidade poucos anos depois.
Burmeister -
Isso sempre vai ser assim, porque o projeto de lei do Plano Diretor (encaminhado pela prefeitura) quando entra na Câmara ganha um status político. É ali onde estão representadas as mais diversas sensibilidades. As influências sob a Casa política são diferenciadas das que se pode fazer ao Executivo ou a um grupo que está formulando uma proposta.

O projeto do atual Plano Diretor mudou na Câmara Municipal?
Burmeister -
Sofreu alterações. É difícil entrar no detalhe, se foi melhor ou pior. Houve concentração do debate em apenas um pedaço do Plano Diretor - que para mim é algo reducionista, as pessoas geralmente se fixam na questão normativa ou reguladora: taxa de ocupação e altura dos edifícios, o que se pode ou não construir.

É uma questão representativa para o dia-a-dia.
Burmeister -
Para o dia-a-dia, talvez. Se um sujeito faz um edifício muito mais alto do lado da sua casa... Essas situações são sensíveis e a gente sempre se movimenta pelo que mais nos toca. Mas não podemos ficar restritos a isso. Porto Alegre tem um instrumento moderno, o Plano Diretor, que sinaliza estratégias para o desenvolvimento. É a consolidação de uma estratégia que a viabiliza. O Plano Diretor teve os “corredores de centralidade”, que estavam colocados: o corredor Anita-Nilo (Peçanha), o da Terceira Perimetral.

Uma maneira de estimular o desenvolvimento em grandes avenidas da cidade.
Burmeister -
Em grandes eixos, é muito mais abrangente. Mas a gente vai perdendo o fio da meada, a estratégia se dissolve e acaba apenas em um desenho, um mapa. Fica na teoria.

Por quê?
Burmeister -
A cidade tem uma dinâmica acelerada. Moro nesse bairro (Três Figueiras) há mais de 20 anos. Quando vim para cá, a região do shopping Iguatemi era um descampado, a Nilo Peçanha foi feita para chegar ao Iguatemi. Vinte anos não é nada em uma cidade, mas hoje temos esse eixo da Nilo Peçanha-Iguatemi que não existia, foi construído nos últimos 20 anos. A cidade que amanhece não é a mesma que adormece, e a que adormece não é a mesma que amanhece. Ela não para, é um produto que nunca acaba. A lei (o Plano Diretor) de 1979 por 20 anos não sofreu alterações, mas a cidade sim, independentemente da lei.

Por isso a revisão?
Burmeister -
A legislação (atual Plano Diretor) promulgada no governo de Raul tinha o instituto da revisão periódica. E constituiu Regiões de Gestão do Planejamento, que não existiam. Com base nessas estruturas, é possível mobilizar as oito regiões da cidade e discutir os resultados que o Plano produziu nessas áreas. Uma mobilização social muito mais concreta do que a anterior. As pessoas não tinham endereço para ir. Agora existe essa estrutura mobilizadora da vontade do cidadão.

Que é a estratégia do Sistema de Planejamento.
Burmeister -
É uma estratégia que teve resultado, porque a cidade não é do prefeito nem de ninguém, é de todos. Mas há atores que atuam e são mais expressivos. Especialmente a área da construção civil, que, quando discutíamos o Plano Diretor, se mobilizou intensamente. Foram extremamente competentes, não perdiam uma reunião, onde quer que fosse, para defender seus interesses, legítimos. A tese do Sindicato (da Indústria) da Construção Civil (Sinduscon) é ter os melhores proveitos do que fazem, construir mais no que for possível - sempre o limite.

E não havia Fóruns de Planejamento para o contraponto.
Burmeister -
Não. Nessa situação, aproveitamos a estrutura do Orçamento Participativo.

Esse canal de participação que se criou pode minimizar efeitos das distorções que foram aprovadas no Plano Diretor, em 1999?
Burmeister -
Sim. Para essas circunstâncias é que foram criados esses fóruns: para corrigir distorções, forçar acertos. Não se pode condenar os atores sociais da cidade por seus interesses. A cidade é um tabuleiro de conflitos de interesses muito grande. Coloco sempre essa questão dos interesses econômicos, porque a cidade também é um resultado dessas situações.

Mas não é frustrante, por exemplo, para associações de moradores que observam distorções em seus bairros, apontam um ajuste e ele não sai do papel. Há lideranças comunitárias que desistiram de participar.
Burmeister -
Tivemos mais de 20 anos de um regime de exceção, há um arrasto de situações institucionais que vêm vindo e ficam. A participação era inexistente. As pessoas não tinham oportunidade de se envolver com questões coletivas. Quando se coloca a disponibilidade de participação, as pessoas querem resgatar o seu passivo. E isso nem sempre acontece, porque as estruturas políticas não estão sensíveis a isso - umas mais, outras menos - e lideranças, porque não tiveram a oportunidade de “se educar” no processo participativo, assumem frustrações, como “não vou mais (participar), porque perco sempre.”

Um exemplo pontual: nas audiências públicas sobre a revisão do Plano Diretor em 2007, as associações se mobilizaram, mas foram derrotadas pelos sindicatos da construção civil, que levaram mais de mil pessoas, com ônibus, lanche...
Burmeister -
Isso frustra, sem dúvida, é uma prática que temos que superar. Mas essas são as medições de forças que existem entre os atores sociais. Considero natural, embora algumas vezes injusto, é do jogo. Mas há uma situação em que a comunidade tem uma força muito expressiva, que ela não sabe usar e não está usando.

Qual?
Burmeister -
A pressão sobre a Câmara. Porque a Câmara é que aprova (a lei). Se a comunidade não tiver mobilização e uma capacidade de exigir dos vereadores suas posições... O movimento social deveria ter como estratégia a mobilização em cima da Câmara. É uma Casa extremamente sensível, para um lado e para o outro.

Qual sua avaliação dos conflitos em torno dos projetos na orla do Guaíba, do Pontal do Estaleiro, Cais Mauá e da dupla Grenal?
Burmeister -
Tem que haver mediação. Porto Alegre tem um benefício natural fantástico que é a orla do Guaíba. Mas o desprezo que temos pela orla é impressionante. Por um lado, uma radicalização absurda por setores ambientalistas, que entendem que não se deve fazer nada, quando já foi feito: a margem do Guaíba era na avenida Praia de Belas, não existia Parque Marinha do Brasil. A cidade se modifica, vai se configurando. Essa interface do rio com a cidade poderia ser valorizada.

Há trechos em que isso acontece?
Burmeister -
Há uma valorização tímida entre a Usina do Gasômetro e o Beira-Rio. Mas é muito desqualificada, não há equipamentos para fazer essa ligação com o rio. A proposta de ocupação do Pontal do Estaleiro qualificava o espaço. Só que surgiu a questão de fazer residências, que não ficou resolvida. Entendo que a cidade perdeu. O Grêmio tem em frente ao shopping aqueles campinhos de futebol. O Internacional, uma área privada. Por que esse privilégio? Insisti muito na época (da prefeitura) em um projeto específico, o Parque Linear da Orla. É preciso uma visão da orla.

A prefeitura tem um grupo de trabalho que fez um relatório sobre a orla.
Burmeister -
O papel aceita tudo. Mas chegar à beira do rio e usufruir de equipamentos, uma marina ou qualquer coisa pública, que estão todas listadas e não acontecem? Não acontecem porque o setor público não tem capacidade de investimento ou porque as iniciativas de investidores batem em limites.

O embate com grupos ambientalistas, que o senhor mencionou, não se dá porque a estratégia de Qualificação Ambiental do Plano Diretor, que previa a preservação, ficou só na intenção?
Burmeister -
Sim. A estratégia é uma potencial solução. Se não se começa a desdobrá-la, a estratégia não se desenvolve.

As áreas de interesse ambiental, previstas na lei, não estão regulamentadas. Isso não cria uma ansiedade da população em proteger esse patrimônio ambiental, dando margem a conflitos?
Burmeister -
Claro que cria. Quando se começou a discutir o Plano, surgiram as áreas de proteção ambiental e de interesse cultural. Mas se separa tudo isso como se estivesse fazendo uma receita: quando chegar a hora, pego, vou lá e busco. Falta um núcleo no âmbito da prefeitura, multissecretarias, que discuta a questão do desenvolvimento estratégico da cidade. E existem técnicos capacitados para isso.

Esses complementos estão previstos na revisão do Plano Diretor, mas até hoje não se sabe quais as demarcações das áreas especiais, nem o que se pode ou não.
Burmeister -
Só que chega uma hora em que é preciso definir. Bater o martelo para passar a uma nova etapa. Senão, não se sai do lugar.

A revisão do Plano Diretor se arrasta há seis anos. Isso não atrasa o debate de outras questões?
Burmeister -
Claro que atrasa as outras discussões.

E se a Câmara adiar a revisão por mais um ano?
Burmeister -
A cidade perde. Sempre que se adia, está perdendo.

O projeto que está na Câmara, no item mobilidade urbana, trata apenas de hierarquização de vias.
Burmeister -
Isso (hierarquizar as vias) é o mais fácil e rápido. Ao definir estratégias, é preciso um grupo que as movimente porque, pela iniciativa do corpo funcional, isso não acontece. Um movimento externo, da sociedade, de governos.

Moradores de bairros residenciais observam que casas são substituídas por prédios com muito mais moradores e carros. E as ruas são as mesmas.
Burmeister -
O que era uma casa unifamiliar vira um prédio com 30 famílias. Sou pessimista, a questão do automóvel não tem solução. Veja a Terceira Perimetral: já está esgotada. Erramos ao fazer corredor de ônibus, basta ver um corredor na Farrapos ou Assis Brasil às 18h: estão como se fossem um metrô, só que cada vagão tem um motor. A estratégia de integração com a Região Metropolitana precisa ser melhor implantada. O modelo dos corredores de ônibus se esgotou. É preciso outra alternativa. Talvez veículo leve sobre trilhos. Fala-se em metrô, mas a época de construí-lo já passou, foi no século passado. E é muito caro.

O que o senhor pensa do Portais da Cidade?
Burmeister -
Qualquer atitude que se tome é melhor que a inércia.

Os construtores reclamam do poder público de que os equipamentos, como parques, estão em áreas específicas da cidade, concentrando os empreendimentos.
Burmeister -
A cidade sempre vai ser carente de equipamentos, especialmente na parte mais antiga, quando não havia essa preocupação. Se observarmos os bairros da região Norte, próximos ao Cristo Redentor, veremos que são uma colcha de retalhos, onde os equipamentos também são pequenos. Parques e praças maiores não surgiram com esse racionamento (de espaços).

O Sinduscon critica a burocracia aos projetos.
Burmeister -
Concordo que há muita burocracia. Deveríamos responsabilizar mais os técnicos dos empreendimentos. Existe um conflito interno de que na desburocratização os funcionários (da prefeitura) acabariam desprestigiados. É preciso superar isso.

Perfil
Newton Burmeister, 72 anos, é natural de Vacaria (RS), mas passou a infância no Paraná. Voltou ao Estado na adolescência, quando se mudou para Porto Alegre. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Ufrgs em 1965. Além de fazer projetos, também atuou como professor universitário na Ritter dos Reis.

Começou sua militância política ainda na faculdade. Foi presidente da seccional gaúcha do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), na primeira metade dos anos 1970, época em que a instituição era um dos focos de resistência ao regime militar. Foi presidente da Federação Nacional dos Arquitetos, participando pela entidade dos debates sobre a Constituição.

Filiou-se ao PT logo que o partido foi criado - “só não fui fundador porque tive um compromisso profissional na data do congresso”. Secretário municipal de Obras na gestão de Olívio Dutra (PT) na prefeitura de Porto Alegre (1989-1992), comandou a Secretaria do Planejamento Municipal nos governos petistas de Tarso Genro (1993-1996) e Raul Pont (1997-2000). Desde que deixou a prefeitura, abandonou a vida pública. Hoje, faz projetos arquitetônicos.

(Por Guilherme Kolling e Helen Lopes, JC-RS, 26/10/2009)


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