A matéria reproduzida ao final deste comentário saiu escondidinha, no segundo caderno do Cotidiano da Folha de S.Paulo, e não mereceu chamada de capa. É inacreditável que o jornal tenha feito o que fez na edição de sábado (03/10). Resumindo a história, depois de afirmar, no dia 19 de julho, na primeira página, que 35 milhões de brasileiros seriam contaminados pela gripe suína, o jornal mandou a campo o seu próprio instituto de pesquisas, o Datafolha, para realizar uma das coisas mais ridículas da história do jornalismo brasileiro.
Sim, porque a enquete mesmo é algo surreal: o Datafolha mandou seus pesquisadores para as ruas perguntar às pessoas se, nos últimos meses, elas tiveram "sintomas de gripe". Com o resultado em mãos, a Folha escreveu outra pérola que não resiste a dois minutos de análise. Segundo o jornal, "27% dos brasileiros tiveram sintomas de gripe desde junho", o que equivale a 51,3 milhões de pessoas.
Bem, aí o jornal faz uma continha malandra, diz que 40% desses casos devem ser da variante suína e chega aos 20 milhões de infectados pela doença no Brasil. No meio do texto, a ressalva de que o "auto-diagnóstico" não é propriamente a melhor maneira de se aferir as coisas, mas, enfim, está lá o número grandão – 20 milhões, uma enormidade, e ainda assim, 15 milhões abaixo do "previsto" pelo jornal em julho.
Um espanto
É evidente que a pesquisa não vale coisa alguma e que o número está superdimensionado. Dos tais 27% dos entrevistados (e não de toda a população brasileira, conforme a própria pesquisa mostra, porque não foram pesquisados os menores de 16 anos) que disseram ter tido sintoma de gripe, é bastante provável que um percentual expressivo tenha respondido afirmativamente mesmo no caso de ter passado apenas por um mero resfriado, muito mais comum do que a gripe, conforme apontam os especialistas.
Ademais, a estupidez cometida pelo jornal não se sustenta pela taxa de letalidade da doença. Se de fato fossem 20 milhões de brasileiros com a suína, apenas na faixa acima de 16 anos, admitindo a taxa de 0,4%, já deveriam ter morrido 80 mil pessoas em consequência da doença. Só que não morreram nem duas mil. Realmente, espanta que um jornalista inteligente, estudado e bem formado como Hélio Schwartsman se preste ao triste papel de assinar uma sandice como a que se pode ler a seguir.
"27% dos brasileiros tiveram sintomas de gripe desde junho
Pesquisa Datafolha mostra que, nos últimos três meses e meio, o equivalente a 51,3 milhões de pessoas experimentou quadro gripal
Até julho, o vírus da gripe suína correspondia a 40% dos casos leves, o que sugere que 20,5 milhões de pessoas podem ter contraído a doença
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Pesquisa Datafolha mostra que 27% dos brasileiros com mais de 16 anos relataram ter tido "sintomas de gripe" entre junho e a data da entrevista (de 9 a 11/9). Extrapolando essa porcentagem para a população geral, isso significa que algo em torno de 51,3 milhões de pessoas experimentaram um quadro gripal nos últimos três meses e meio.
Mais ou menos a metade delas (14% dos entrevistados, ou cerca de 26,6 milhões) declararam ter procurado um médico -o que explica, com folga, a superlotação dos hospitais.
Evidentemente, nem todo "sintoma de gripe" é de fato provocado por vírus, nem todo vírus respiratório é o da gripe e nem toda gripe tem como agente causador o H1N1 pandêmico.
Dados do Ministério da Saúde sobre os casos menos graves indicam que o novo H1N1 respondia por 40% das amostras processadas até o fim de julho. A partir daí, a pasta concluiu que o esforço de fazer o diagnóstico laboratorial de quadros leves não compensava e passou a testar só os mais graves. Nessa situação, no auge da epidemia (primeira semana de agosto), o H1N1 foi identificado como causador de 58% das síndromes respiratórias agudas graves notificadas e testadas.
Se aplicarmos o "deflator" de 40% aos 51,3 milhões de quadros gripais, chegamos a 20,5 milhões, que representam, na opinião de infectologistas, uma estimativa bruta defensável dos casos de gripe suína ocorridos até o momento.
"Não dá para publicar um artigo científico no "New England Journal of Medicine", mas, com as devidas ressalvas, [esse método] serve para dar uma ideia do tamanho da epidemia aqui", disse Esper Kallas, da USP e do Hospital Sírio-Libanês.
O principal problema, aponta, é que não dá para equiparar o autodiagnóstico a um diagnóstico médico. "Mas não há como avançar mais numa entrevista simples [como a do Datafolha]."
O médico afirmou também que não se surpreenderia nem se os 27% tivessem tido a gripe suína. Ele disse que já há estudos apontando para uma circulação de 30% do H1N1 no Chile.
Celso Granato, do Laboratório Fleury, que ajudou a Folha a preparar o questionário do Datafolha, considerou os 27% um índice elevado: "Não esperava tanto!". Relativizou o problema do autodiagnóstico lembrando que o ministério acaba de fazer uma longa campanha na TV para explicar o que é gripe.
Também disse que o índice de 14% de procura por um médico sugere consistência no comportamento dos entrevistados. "Ninguém vai ao médico por um resfriadinho", afirmou.
Nordeste
O diretor do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, David Uip, surpreendeu-se com a porcentagem de quadros gripais apurada no Nordeste, que superou a do Sudeste. "Só isso já merece uma investigação."
Uma possibilidade aventada pelo médico é que a ampla repercussão midiática da epidemia tenha contribuído para inflar os números nordestinos.
A literatura médica é quase unânime em apontar incidência decrescente de gripe conforme se avança para o norte. Também não se verificou, no Nordeste, pressão tão forte sobre o sistema de saúde quanto a observada no Sul e no Sudeste.
Kallas, porém, disse que, com a circulação cada vez maior de pessoas entre cidades e regiões, não esperaria taxas tão menores no Nordeste.
Vale ainda observar que os 51,3 milhões constituem uma extrapolação conservadora, pois a metodologia do Datafolha não considera a população até os 16 anos, justamente a mais suscetível a contrair vírus respiratórios em geral. Esse recorte etário representa cerca de 25% da população."
(Por Luiz Antonio Magalhães, Observatório da Imprensa, 06/10/2009)