Há umas duas semanas, um vendaval arrastou ou fez ruir dez casas na aldeia waurá, no Alto Xingu. Muitas pessoas ficaram feridas, duas mulheres gravemente. Embora surpresos com o ineditismo de um vendaval naquela área, os waurás iniciaram imediatamente a reconstrução das casas, agora preocupados em torná-las mais resistentes. O vendaval é consequência do desmatamento em todo o entorno do Parque do Xingu, pelo plantio da soja e implantação de pastos: o vento forte não encontra mais resistência, atrito, e chega a áreas aonde nunca chegara.
Estranho que pareça, os índios do Xingu mostram-se à frente de quase toda a sociedade brasileira, promovendo o que os cientistas do clima chamam de "adaptação" ao novo quadro climático naquilo que ele tem de irreversível e exige transformações muito rápidas. Construções mais resistentes são um desses caminhos, como tantos eventos no Sudeste no Nordeste do País têm mostrado ser necessário. E quem ler alguns relatórios e estudos recentes com certeza vai se alarmar e concluir que nosso atraso é muito preocupante.
Na semana passada, enquanto o G-20 não conseguia passar do terreno das intenções nessa matéria do clima, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) publicava um relatório (Climate Change Science Compendium) no qual afirma que as mudanças climáticas, no ritmo e na escala de hoje, "podem estar ultrapassando as previsões mais pessimistas feitas pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas em 2006". E eventos previstos para o longo prazo podem estar muito mais próximos.
Na Europa, por exemplo, o relatório menciona o derretimento dos gelos nos Alpes e nos Pireneus; a seca extrema em áreas do Mediterrâneo; acidificação dos oceanos, com maior absorção de carbono. Também menciona a forte perda de gelos na Groenlândia e em outras áreas (60% mais que a perda recorde de 1998), que pode levar a uma elevação do nível dos oceanos de até dois metros no fim do século (ou dez vezes mais nos próximos séculos).
Amazônia, Norte da África e Índia podem ser atingidos por eventos muito fortes antes do que se previa. A perda de gelos nas montanhas pode afetar até 25% da população com falta de água para consumo, irrigação e produção de energia. Podem desaparecer alguns climas típicos de certas regiões. O Semiárido nordestino pode perder 10% de seus já escassos recursos.
Tudo isso leva o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, a fazer um apelo no relatório (que sintetiza 400 estudos científicos recentes) em favor de ações imediatas. "O tempo para hesitações acabou", diz ele. E como não concordar, se a possibilidade é de aumento de 3 a 4 graus na temperatura da Amazônia em 50 anos? Se já há mudanças "irreversíveis" em toda a América do Sul, até na Patagônia, com a "redução drástica" dos gelos? Se se amiúdam eventos - que o relatório menciona - como os do Sul e do Nordeste brasileiros em 2008-2009? Se Argentina, Paraguai, Uruguai e Chile enfrentaram a pior seca em 50 anos?
Não faltam, pois, sinais de alerta. As emissões globais de poluentes, que subiram 1,1% ao ano entre 1990 e 1999, aumentaram para 3,5% anuais de 2000 a 2007. E, diz o relatório, são claros e visíveis os efeitos da concentração de poluentes na elevação do nível do mar, na acidificação dos oceanos e nas mudanças de suas correntes. Com a atual tendência, os gelos polares poderão ter desaparecido até 2030.
O documento do Pnuma não foi a única advertência grave na semana passada. Relatório de 29 cientistas na revista Nature - entre eles o renomado James Hansen, da Nasa, e Robert Constanza, que se notabilizou pelos estudos sobre o valor monetário da biodiversidade - alinha nove limites planetários que não deveriam ser ultrapassados, mas já o foram ou estão próximos disso, por causa de ações humanas.
Na concentração de poluentes na atmosfera, por exemplo, dizem os cientistas que não deveríamos ultrapassar 350 partes por milhão (ppm), mas já estamos em 387; na perda da biodiversidade, já fomos muito além de qualquer limite prudente; também nos ciclos do nitrogênio e do fósforo, na depleção da camada de ozônio, na acidificação dos oceanos, assim como na poluição química. Estamos próximos de atingir o limite nas mudanças no uso da terra e no uso de água por pessoa.
Enquanto a ciência mostra a gravidade do quadro, por aqui continuamos patinando. O Plano Nacional de Mudanças Climáticas continua perdido no Congresso. O novo inventário das emissões brasileiras, anuncia-se agora, só incluirá até o ano 2000. O zoneamento ecológico/econômico para a expansão do álcool permitirá que ele continue avançando no Cerrado, que está perdendo imensas áreas de vegetação a cada ano e já emite tantos poluentes quanto a Amazônia (350 milhões de toneladas/ano de CO2) . Leilões de energia continuam a prever forte participação de termoelétricas, altamente poluidoras. E por aí afora. Embora o governo continue a manifestar preocupação com o clima, ainda não aceita compromissos de redução das emissões, só metas voluntárias.
A ONG Vitae Civilis, que acompanha as convenções do clima, prevê alguns cenários alternativos para a reunião decisiva em Copenhague, em dezembro (há uma preparatória esta semana, em Bangcoc): 1) Um acordo que fique aquém da necessária redução das emissões em 40% até 2020 e 80% até 2050, para evitar que a temperatura suba além de 2 graus; 2) impasse: ao final, apenas um relatório da convenção, sem efeitos práticos; 3) um acordo apenas dos países industrializados (e de efeitos incertos); e 4) decisões da convenção que não sejam obrigatórias para todos. E seriam indispensáveis problemáticos US$ 300 bilhões anuais dos países industrializados para os demais, de modo a que estes possam fazer a mitigação e a adaptação necessárias.
No momento, diz a ONG, "a situação é muito grave". Bota "grave" nisso.
(Por Washington Novaes*, O Estado de S. Paulo, 02/10/2009)
* Washington Novaes é jornalista e seu e-mail é wlrnovaes@uol.com.br