Quem mora nas ilhas de Porto Alegre não vê o lado glamouroso do lago Guaíba. Não vê o famoso pôr do sol. O único glamour que quem vive nas ilhas do Guaíba vê são as luxuosas casas que margeiam o lago. Quem mora do lado de cá da Capital contempla a beleza do entardecer. Quem reside do lado de cá, porém, não enxerga o que quem mora nas ilhas vive, diariamente, quando dos períodos de chuva na Capital e nas cidades da Região Metropolitana.
A reportagem do Jornal do Comércio pegou carona na carroça dos papeleiros Adriano e Paulo Ramos para acompanhar, por pouco tempo, parte das dificuldades de quem vive na Ilha dos Marinheiros quando o nível do Guaíba sobe. É impossível andar a pé nas áreas mais baixas. O único modo de se locomover é através de carroças, cavalos, botes e barcos. Caso contrário, a pessoa deve ter um bom par de botas de cano longo, ser extremamente corajosa e não temer os riscos de adquirir alguma doença.
Fernando Souza mora há 16 anos na ilha. Segundo ele, o medo maior ocorre durante a noite, pois a água pode subir e pegar todos de surpresa enquanto dormem. “Nós estamos permanentemente em alerta. Essa água é imprevisível. À noite nós vamos dormir e ela está normal; quando acordamos pela manhã já está batendo na porta. Várias vezes já tivemos de sair. Nessa cheia de agora, a água só não entrou em casa porque a construção é alta”, relata.
Os moradores da Ilha dos Marinheiros, sabedores do constante risco de enchente do lago, constroem suas casas sobre pilares, a uma altura considerável. Em muitas delas, nem isso é suficiente. No caso das residências que ficam completamente ilhadas ou são tomadas pela água, a única coisa a ser feita é retirar as famílias e alojá-las em outro local, que, no caso da Ilha dos Marinheiros, é a escola.
O problema, porém, não se encerra com a retirada dos moradores de suas casas. Muitos deles não querem sair. Duas são as razões básicas para isso: uma é o medo de ter seus pertences furtados durante o período que não estiverem em casa; a outra é o fato de, ao se ausentarem de suas residências, se sentirem impotentes, não poderem fazer nada para salvar um pouco que seja de seus móveis e utensílios domésticos. “Eu não deixo minha casa. Nunca saí, mesmo quando a água subiu muito mais do que agora. É muito perigoso. O risco de voltar e não encontrar mais nada é muito grande”, diz Cacilda Rodrigues, há 44 anos moradora da ilha.
Os irmãos Ramos seguem com seu cavalo água adentro. O animal dá sinais de cansaço, afinal de contas, carrega na carroça os dois irmãos, o repórter e o fotógrafo. Caminhar com água batendo no joelho exige muito mais do físico do animal que, valente, segue sem parar, a não ser quando Paulo faz uma breve parada para que as histórias dos moradores possam ser ouvidas e as imagens possam ser registradas. Não se vê muitas pessoas nas ruas e as que estão, em sua maioria, ou trabalham ou aproveitam o sol da tarde de terça-feira para pôr algumas roupas e móveis para secar. Não se nota tristeza nos rostos. A única explicação para tal é dada por Souza. “Já esteve muito pior. Hoje está até bom aqui”, ressalta.
Crianças brincam. Duas correm atrás de um galo que, tentando voar, parece caminhar sobre as águas. “Vai para a panela, vai para a panela”, diz o menino após conseguir apanhar a ave. A carroça segue e mais adiante é possível ver um outro menino se equilibrando sobre um pedaço de isopor, utilizando um galho que leva em uma das mãos como remo. Em um dos pátios alagados, outra criança demonstra muita destreza indo de um lado para o outro e dando giros completos com um barco. Mesmo em meio à tragédia, ainda há lugar para sorrisos e brincadeiras.
(Por Juliano Tatsch, JC/RS, 30/09/2009)