Quando a bruxa Hécate, em Macbeth, declara que “a confiança é o maior inimigo dos mortais”, William Shakespeare está, no fundo, fazendo uma análise de risco. Com essa leitura, o sociólogo Sérgio Abranches abriu um dos muitos debates que têm girado sobre a nova sociedade e a nova economia que começam a emergir, balizadas pelos limites da natureza, em especial a restrição às emissões de carbono, pela transparência e pela inclusão social. Quem está preparado para esse cenário inevitável de transformações?
Risco e oportunidade são as duas palavras mágicas do vocabulário financeiro e econômico, faces de uma mesma moeda, e que se tornam mais significativas quanto maiores as incertezas. Talvez nunca a civilização tenha vivido realidades tão incertas. Quando os cientistas descobrem que o gás metano guardado sob o permafrost pode ser liberado com o aquecimento da Terra, não estamos mais olhando o derretimento dos mercados financeiros, que há um ano deixou todo mundo em pânico, mas o derretimento do mundo em si.
Este, que é apenas um exemplo de tipping point – a gota d’água que faz entornar o caldo -, indica que a manutenção das coisas como são hoje é o menos provável dos cenários, diz Abranches. Ou seja, manter o chamado business as usual é a mais arriscada das estratégias. Na pré-crise, a confiança excessiva resultou na quebra dos mercados e deve jogar a economia mundial para o crescimento negativo pela primeira vez desde a Segunda Grande Guerra. Na pós-crise (assumindo-se que há indícios de uma recuperação econômica), a confiança de que tudo voltará a ser como antes remete, no mínimo, à tragédia de Macbeth.
Atenta, a comunidade científica observa e informa sobre as profundas transformações ambientais sofridas no mundo. Combativos, os movimentos socioambientais há tempos empunham a bandeira da mudança nos modelos de consumo e produção. Cada vez mais conectados pela tecnologia, os cidadãos pedem um mundo melhor, ainda que a maioria resista a mudar os próprios hábitos e padrões. E, agora, a iniciativa privada – ou ao menos uma importante parte dela -, pressionada por investidores, dá sinais, enfim, de que é preciso prestar mais atenção a esta sociedade e a esta economia que emergem. Perguntam-se que bicho exatamente é esse.
O compromisso para redução de suas emissões de carbono, firmado pela cúpula de 18 grandes empresas no final de agosto na forma de uma carta, vem dar algum corpo (também no sentido de escala) ao espectro da economia verde no Brasil, ou a economia de baixo carbono, ou a economia do amanhã, como denomina Achim Steiner, diretor do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), em entrevista à página 10. Para Steiner, o que vai definir uma economia verde é a capacidade de manter sua infraestrutura ecológica e de ter uma produção limpa.
A iniciativa teve apoio do Instituto Ethos e do Fórum Amazonas Sustentável. Além das indústrias, os setores do agronegócio, da bioenergia e das florestas plantadas também marcaram posição em relação às mudanças climáticas. No início de setembro, representados por 14 de suas principais associações, lançaram a Aliança Brasileira pelo Clima e apresentaram um documento com recomendações ao governo para uma agenda climática nacional a ser apresentada na COP 15. (Veja íntegra da carta aqui)
Inéditos, os dois fatos são indicativos de que o tema entrou no radar do setor produtivo brasileiro, ainda que tenha sido mais pela face da moeda que representa o risco do que pela face da oportunidade. Pois o que muitos viram primeiro na sustentabilidade foram ameaças à reputação, perda de mercado e clientes, punições legais e cobranças, como se percebe na fala de Roger Agnelli, presidente da Vale, ao assinar o compromisso: “Estamos indo para uma economia verde. A sociedade, o consumidor, tem exigido isso. Faz parte da licença para operar. Se a gente não fizer agora, vai pagar essa conta mais tarde”.
Faz toda a diferença
Falta enxergar na sustentabilidade um vasto campo fértil para a criação de novos ativos, mercados, tecnologias, qualificações e modelos de negócios que sejam mais inclusivos. Walter Mendes, responsável pela área de renda variável do Itaú Unibanco, destaca a atenção do investidor internacional com a questão climática, mas que vai além da preocupação com o risco.
Ele explica que atributos ligados à governança, como transparência e respeito ao acionista, já foram de tal forma incorporados às exigências que já não trazem muita diferenciação às ações. “Já as questões do clima e dos investimentos que envolvem tecnologias verdes e mais eficientes têm tanto a evoluir que funcionam como um diferencial capaz de agregar valor”, diz.
Os empresários assinaram uma série de compromissos ligados à economia de baixo carbono, não sem propor ao governo federal que assuma uma posição de liderança nas negociações internacionais sobre clima, com definição de metas claras de redução de emissões. É dada como certa a assunção de metas por parte do Brasil na Conferência das Partes em Copenhague, em dezembro; restaria definir percentuais e prazos (mais em Especial Clima à pág. 44).
Mas pode-se perguntar por que o movimento não é inverso, isto é, o governo federal articular políticas que dêem respaldo às iniciativas do setor privado que começam a pipocar isoladamente. Uma articulação que denotaria consistência e proatividade da nação brasileira aos olhos do mundo. Correm informações de que o próprio presidente Lula, cobrado pelos seus pares, estaria descontente com a política climática exercida peloItamaraty.
O ingresso do Ministério da Fazenda (MF) em assuntos do clima poderá ser capaz de imprimir maior teor econômico e financeiro à agenda climática do País, que até então esteve nos terrenos da diplomacia, da soberania nacional e da tecnologia. Segundo informações da Assessoria Econômica do MF, um grupo ainda informal, composto de cerca de dez integrantes – do qual também participam o Ministério do Planejamento e a Comissão de Valores Mobiliários -, tem-se reunido sistematicamente desde outubro de 2008. O objetivo é construir capacidades técnicas para lidar com os impactos econômicos do aquecimento global.
“Já existe um mapa do caminho para a economia verde e as pessoas estão se antecipando. Agora, quem precisa se antecipar são os líderes, o Congresso, que está atrasado anos-luz em relação a este debate. Lá, as pessoas estão discutindo como retroceder na legislação ambiental”, declarou a senadora Marina Silva à imprensa, durante o evento dos empresários. Ela afirmou que essa não é uma discussão do verde pelo verde, mas engloba a agricultura, o transporte, a energia, a saúde, a educação, o conhecimento e a inovação tecnológica, que gera oportunidades de emprego.
Assim, a provável entrada de Marina na disputa das eleições 2010 promete quebrar a dicotomia economia versus meio ambiente, em um país onde a principal política pública é uma agenda “crescimentista”, encerrada no Programa de Aceleração do Crescimento. “PAC, PIB, só se fala disso no Brasil. Trocar desenvolvimento por crescimento é um equívoco que data da Segunda Guerra Mundial”, disse Guilherme Leal, fundador da Natura e do Instituto Arapyaú.
Bastaria o Brasil dar uma “pedalada rápida”, na visão de Sérgio Abranches, para que se formassem condições que o alçariam a um novo patamar: a educação deixaria de ser tão ruim, a biotecnologia faria florescer uma nova economia florestal, a logística de transporte se tornaria mais sustentável e se desenvolveria uma democracia populista digital, baseada no ativismo e na mobilização do cidadão por meio da internet. Além disso, o País tem vantagens comparativas na descarbonização da economia mundial, como o potencial energético renovável, os ciclos generosos de água, os estoques de biodiversidade e um bom domínio de todas as áreas da biotecnologia.
Entretanto, deitado no berço do mito esplêndido de que temos uma matriz energética limpa (vale notar que as emissões das hidrelétricas de Tucuruí e Samuel, por conta do metano gerado nos reservatórios, superam as de termelétricas a gás), as políticas de descarbonização voltam-se mais para o controle do desmatamento e desviam a atenção que precisaria ser dada às indústrias, ao transporte, à construção de casas populares. Assim, a economia verde no Brasil perde a oportunidade de avançar mais rapidamente nesses setores. O que não quer dizer que avance nas florestas, ao contrário, onde o controle das emissões se dá mais por ações de comando e controle – inegavelmente importantes – do que pelo incentivo econômico propriamente dito.
É o clima, estúpido
A urgência climática, e não as reflexões causadas pela crise financeira, é que tem alimentado o debate da economia verde, na avaliação dos entrevistados nesta reportagem. Quando a crise eclodiu, muito se falou que a revisão do modo insustentável de consumo e produção abriria espaço para uma nova economia. “Essa é uma crise de natureza fundamentalmente financeira e o potencial de mudança que poderia ter ocorrido no campo ambiental não se concretizou”, constata Helio Mattar, presidente do Instituto Akatu.
Isso porque, em sua avaliação, os políticos em geral não quiseram vincular uma coisa à outra, com receio de que isso levaria a uma recuperação mais lenta da economia. “Diante dos milhões de pessoas perdendo os empregos, é difícil sinalizar outra direção”, diz Mattar. A seu ver, somente com o mundo refeito do susto é que se poderá dar continuidade a um processo de transformação para uma economia sustentável e intensiva na criação de empregos verdes.
Uma exceção foi Barack Obama. “A crise financeira deu a ele a oportunidade para adiantar os investimentos que queria fazer na direção de uma economia verde e estavam previstos em seu programa de governo. Se não fosse pela crise, não poderia investir com tanta ênfase”, analisa o economista e consultor americano Michael Conroy, Ph.D., autor de Branded! How the ‘Certification Revolution’ is Transforming Global Corporations. Do fundo de recuperação de US$ 700 bilhões criado pelo governo, US$ 20 bilhões são designados para a criação de empregos verdes.
Por necessitar desesperadamente de inovação para corrigir o atraso no desenvolvimento de novos combustíveis, a indústria americana ficou mais disposta ao risco de investir em tecnologias de baixo carbono, segundo Mattar. E, aos brasileiros, a crise pouco ensinou: “Minha impressão é que não houve mudanças nem mesmo no sistema financeiro. Para se ter ideia, as provisões para devedores duvidosos equivalem a quatro vezes o lucro dos bancos.” Isso indica como é alta a expectativa de inadimplência por parte das instituições financeiras.
Com o objetivo de que o consumidor passe a ver o banco como um parceiro na tomada de empréstimos (e vice-versa), o Akatu recentemente lançou uma campanha pelo consumo consciente do dinheiro e do crédito. Que começa pela simples pergunta: “Eu realmente preciso comprar isso?” Ou a compra desse produto é só mais um ato de consumismo ou de busca de uma satisfação emocional, por meio de um bem material?
Essa crise parece ter deixado como legado a mensagem de que a solução dos problemas econômicos implica o simples aumento dos gastos, sejam eles públicos, sejam eles privados, por meio do aumento do consumo. Não bastasse isso, “a crise ofuscou muito as negociações sobre o clima em Copenhague”, diz David Zylbersztajn, sócio da empresa DZ Negócios com Energia, que estruturou, com demais parceiros, o Fundo Ecoenergia de Investimento em Participações.
Na Apel Pesquisa e Desenvolvimento de Projetos, consultoria especializada em sustentabilidade, o “movimento” já entrou na normalidade, na avaliação do sócio-diretor Aerton Paiva. Mas, segundo ele, mais de 60% dos seus clientes pisaram no freio no último ano e deu para ver quem realmente estava comprometido com o assunto. Segundo Paiva, as empresas precisam se perguntar se daqui a 20 anos seu produto será ou não aceito do ponto de vista social e ambiental. ‘O que vai substituir o aço, por exemplo? E o petróleo? Quanto tempo isso vai levar? Os grandes desafios estão na pesquisa de materiais e na capacidade de inclusão social do negócio”, diz.
Elisabeth Lerner, sócia da Tripod Investments – nome que referencia o tripé social, ambiental e econômico -, diz que setores ligados à autossuficiência energética, às energias renováveis e às tecnologias limpas começam a aparecer com muita força, pelo menos nos EUA, nessa nova fase de indícios de retomada econômica. Com um ano e meio de vida, a Tripod está em processo de captação do seu primeiro fundo de investimentos.
Por que investidores se interessariam por negócios com um adicional de risco, uma vez que envolvem novas tecnologias e mercados ainda em formação, e maturação apenas a longo prazo? Por que buscar iam o risco que vem com o novo? Entra aqui a oportunidade, a do valor adicionado citada por Walter Mendes, do Itaú Unibanco. “Tecnologias nunca testadas têm esse complicador do risco”, explica Elisabeth. “Mas, se já existe um produto, um mercado, a sustentabilidade entra como um componente que introduz melhorias e agrega valor.” Ela dá como exemplo a cadeia de alimentos, em que a rastreabilidade dos fornecedores (sistema pelo qual se atesta a origem do produto) age tanto na segurança alimentar como no acesso a mercados que exigem atributos socioambientais, como a carne que não provém de áreas desmatadas na Amazônia.
“As empresas que estão mais identificadas com enfoques de sustentabilidade saíram-se melhor na crise, enquanto o mercado de produtos verdes segue cres amcendo”, diz Conroy, citando os estudos Capturing the Green Advantage for Consumer Companies, da consultoria The Boston Consulting Group, e Green Winners, da ATKearney. No Brasil, o relatório Os impactos da crise econômicofinanceira global na agenda de sustentabilidade corporativa: um estudo de empresas brasileiras líderes em sustentabilidade, produzido pela Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, chega a conclusão similar.
No comparativo entre junho de 2008 e junho de 2009, o crescimento mundial do número de cadeias de custódia com selo do Forest Stewardship Council foi de 47%, para 13.872 certificados. Segundo Roberto Waack, presidente do board mundial do FSC, a origem desse crescimento pode estar na maior conscientização do consumidor final, mas provavelmente teve forte efeito a imersão do varejo no mundo da sustentabilidade, ao perceberem quanto pesam a reputação e a diferenciação. Além disso, exigências não tarifárias e definições de regras dos governos europeus têm forçado aspectos associados à origem dos produtos e à rastreabilidade. A indústria sentiu na pele a questão reputacional e dos passivos morais e legais. “Trata-se de uma cadeia de forças convergentes”, diz Waack.
As forças, embora ainda não identificadas por todos, convergem para uma nova economia. A afirmação de que “a Idade da Pedra não acabou por falta de pedra” virou o mais novo bordão. Mas é ainda preciso ecoá-lo, principalmente em um país onde ouvidos estão voltados para as promessas eleitoreiras do petróleo do pré-sal.
Não basta ser verde, precisa ser decente
O século XXI enfrenta dois desafios: prevenir-se contra a mudança climática e proporcionar desenvolvimento social e trabalho decente para todos. Isso significa elevar mais de 1,3 bilhão de pessoas para acima da linha da pobreza, oferecendo oportunidade de emprego para 500 milhões de jovens que ingressarão no mercado de trabalho durante os próximos 10 anos.
Foi sob esse enunciado que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil divulgou no final de agosto uma cartilha sobre empregos verdes, disponível aqui. Somente na área de energias renováveis, a OIT espera que haja 20 milhões de empregos até 2030. Atualmente, são 2,5 milhões, dos quais o Brasil responde por cerca de 730 mil, em hidrelétricas e em biomassa.
Apesar de otimista com a criação desses empregos em todo o mundo, a OIT alerta que muitos podem ser “sujos, perigosos e difíceis”. Segundo a organização, as áreas que despertam preocupação incluem a agricultura e a reciclagem, onde é necessário modificar com rapidez situações de baixos salários, insegurança nos contratos de trabalho e exposição a materiais perigosos.
No relatório Green Jobs: towards decent work in a sustainable, low carbon world, a OIT estima que o mercado global de produtos e serviços ambientais aumente dos atuais US$ 1,37 bilhão por ano para US$ 2,74 bilhões em 2020. A metade se refere a eficiência energética e o restante a transporte sustentável, fornecimento de água, gestão de serviços sanitários e de dejetos. O Brasil é mencionado tanto pelo alto índice de reciclagem de alumínio, que emprega 170 mil pessoas, como pelo fato de que 90% da coleta é feita por catadores de lixo em condições nem sempre ideais.
(Por Amália Safatle, Página 22, setembro de 2009)