"Você quer ver, vem olhar aqui, tem quatro bugres mortos, vem ver!", o tom de deboche e ameaça era revelador de um quadro tétrico de racismo e ódio que se julgava restrito às páginas da história de extermínio das populações indígenas no continente e no mundo. Mas naquela hora do meio-dia de 18 de setembro, à beira da BR 486, a cena era muito real.
Enquanto uma integrante do Cimi fotografava o que restou das casas queimadas, onde ainda a fumaça e pequenas chamas eram visíveis, os agentes de segurança e peões da fazenda faziam uma cerca para isolar o córrego e impedir o acesso dos índios, eles davam um show de racismo. "Esses vagabundos têm mais é que morrer!", exclamavam enquanto repetiam sons de tiros para amedrontar a pessoa que estava fazendo o registro de mais uma violência absurda contra a comunidade Kaiowá Guarani do Apika’y, acampada há uns dez quilômetros da cidade de Dourados.
Damiana, a líder religiosa, esteio do grupo que há mais de uma década luta pelo pedaço de terra tradicional, já tendo sido expulsa diversas vezes, mas que não desiste de ter um pedaço de terra tradicional para viver, fazia o relato dramático da agressão sofrida pelo seu grupo por volta de uma hora da madrugada. Em torno de dez pessoas chegaram atirando sobre os barracos onde se encontravam dormindo os indígenas.
Um deles foi ferido na perna atingido por uma bala. No desespero, várias mulheres foram atingidas pelos agressores com socos e pontapés. Logo foram colocando fogo nos barracos, queimando com todos os pertences dos indígenas. Documentos, roupas, bicicleta, lona, madeira, tudo em pouco tempo estava reduzido a cinzas. Os Kaiowá Guarani, indefesos e transtornados, viam mais essa cena de vandalismo.
Quando começou a clarear o dia, foram denunciar o fato e pedir providências. Alguns foram para a Funasa, pois estavam feridos. Outros foram à FUNAI relatar os fatos e pedir socorro. Burocraticamente tudo foi muito lento. A administração regional da FUNAI disse que sequer conseguira que um dos procuradores do órgão registrasse a denúncia. Foram então encaminhados ao Ministério Público Federal. Até o meio-dia, ninguém dos poderes públicos responsáveis havia chegado ao local, que dista uns dez quilômetros da cidade de Dourados.
Não fazia ainda uma semana quando há menos de cinqüenta quilômetros dali, no município de Rio Brilhante, tinha acontecido o despejo da comunidade de Laranjeira Nhanderu e dois dias depois suas casas queimadas pelos fazendeiros e sua milícia armada. Tudo isso acontece enquanto os Kaiowá Guarani esperam ansiosamente a volta dos grupos de trabalho para concluírem os trabalhos de identificação dos tekoha, terras tradicionais deste povo. Quantas violências, mortes, feridos, presos terão que suportar até terem suas terras demarcadas conforme exige a Constituição e leis internacionais?
Sequer à beira das estradas os índios são tolerados. Querem vê-los distante ou embaixo da terra para tranqüilizarem suas consciências.
(Por Egon Heck*, Correio da Cidadania, 21/09/2009)
* Egon Heck é coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) no Mato Grosso do Sul