Cada sociedade, não importa quão desenvolvida, cria suas próprias condições de risco. Às vezes, o detonador é a pobreza. Outras, um crescimento muito rápido e desigual. Sempre, a escassa vontade política de prevenir .
Há catástrofes que adquirem sua forma por uma soma de desatenções humanas e provocações técnicas contra a natureza. E há outras que mostram a força desatada, a fúria da água e do vento, o abismo na terra. Essas formas se entrelaçam, mas deixam interstícios para prevenir a catástrofe. Ver antes, advertir e minorar os padecimentos: nessas tarefas é que trabalha Andrew Maskrey, um destacado especialista internacional.
Eis a entrevista.
Clarín - Desde o terremoto de Lisboa (1755), que causou comoção no Século das Luzes, até o nosso presente, o que mudou na maneira de entender os desastres?
Andrew Maskrey - O desastre que Voltaire descreveu é de um tipo que vai continuar ocorrendo. Estamos falando de tsunamis ou erupções vulcânicas espetaculares, e esses são atos extremos da natureza sobre os quais podemos fazer muito pouco com toda a ciência que temos. Mas, ao longo dos últimos séculos, e com mais intensidade nas últimas décadas, vamos criando condições de risco com a nossa própria forma de desenvolver a sociedade, que, por si sós, configuram ou condicionam desastres.
Então, mesmo que sempre vai haver periodicamente eventos como o de Lisboa, sobre os quais 90% da casualidade tem a ver com a natureza, em quase todos os desastres que acontecem hoje (pequenos, médios e grandes), a natureza tem menos responsabilidade do que as pessoas. A maior parte da responsabilidade corresponde a nós mesmos.
Como se forma essa responsabilidade?
Maskrey - Há uma acumulação de riscos. Por meio de diversas ações, funcionamos como um alternador que vai carregando uma bateria de automóvel. A bateria vai se carregando com riscos. Periodicamente, a bateria se descarrega, que é quando temos os chamados desastres, mas o que acontece é que estamos carregando a bateria mais rápido do que ela se descarrega. Então, há cada vez mais risco. E a nossa atenção está posta nessas descargas – a catástrofe – e não em como armazenamos o risco que depois se descarregará.
Nos países mais ricos, há menos riscos e nos subdesenvolvidos se acumulam os maiores?
Maskrey - Isso não é verdade em termos gerais. Demonstrou-se que, quando os países começam um processo de desenvolvimento econômico e urbano muito rápido, há mais pessoas e bens expostos às ameaças. Um exemplo é a China: taxas de crescimento altíssimas durantes os últimos 15 anos e concentração muito rápida de populações e bens em zonas com riscos. Isso teria que nos dizer que, com o crescimento econômico, paradoxalmente, os riscos começam a subir.
No entanto, com o tempo, normalmente os países vão melhorando sua capacidade de manejar seus riscos, com construções, sistemas de ordenamento territorial e mecanismos institucionais de resposta mais apropriados. Nas primeiras fases de desenvolvimento econômico, o risco sobe e depois, passado certo tempo, começa a baixar. Os países com o nível de risco mais alto não são os mais pobres, mas sim os que apresentam um crescimento muito rápido, que ainda não desenvolveram os mecanismos institucionais capazes de baixar esse risco.
Isso implica em que os desastres não afetam a todos por igual.
Maskrey - Comparemos dois desastres do ano passado. O terremoto da China e o ciclone de Myanmar, que causaram um número relativamente próximo de mortos: 80 mil na China e 140 mil no Myanmar. Mas foram muito diferentes. Na China, morreram milhares de crianças, porque as escolas mal construídas foram derrubadas. Isso significa que o Estado está ali, fazendo desenvolvimento, mas ainda não tem a capacidade de assegurar que essas escolas sejam resistentes. No Myanmar, as crianças morreram não pelo colapso das escolas, mas sim porque não havia escolas. Não havia onde se abrigar ou se refugiar, simplesmente porque havia desenvolvimento zero. O epicentro do ciclone foi uma zona onde praticamente não havia presença do Estado.
Então sim os países muito pobres também podem sofrer uma grande mortalidade, mas não tanta perda de bens econômicos. Recordo um caso interessante, aqui na América Latina. Foi o terremoto e o tsunami que afetaram a costa ocidental da Colômbia em 1979. É a região mais pobre do país, o Chocó, uma zona de população negra, com muito poucas rodovias, com pouca presença do Estado. E as cifras de perdas econômicas foram baixíssimas, porque não é possível perder hospitais nas zonas onde não há hospitais, nem rodoviais onde elas não existem. Isso é um pouco paradoxal.
A nossa época é a época das mudanças climáticas. No entanto, há resistência para se implementar o programa do tratado de Kyoto, para controlar a emissão de gases e proibir a produção de carbono. A que o senhor atribui essa resistência? Ainda não há consciência suficiente do risco?
Maskrey - Está ocorrendo uma tomada de consciência. Eu acredito que isso seja inegável. E se compararmos o nível de consciência sobre o problema hoje com o que havia há só seis anos, vemos que é radicalmente diferente em todos os níveis. A conscientização vai ser cada vez mais rápida. E se não é, os próprios impactos das mudanças climáticas farão com que medidas sejam implementadas.
Há uma questão política: quem paga pelas consequências das mudanças climáticas? Países como a Índia, a China e o Brasil defendem o direito legítimo de alcançar níveis de desenvolvimento que os países ricos desfrutam há décadas. Além disso, deveriam reduzir as emissões que estão, per capita, em um nível inferior às dos países desenvolvidos. Porém, não se conseguiu uma fórmula econômica e política, e o que vai acontecer é que os países que mais vão sofrer os efeitos das mudanças climáticas são os que não contribuíram quase nada com o problema, ou seja, que historicamente tiveram níveis de emissão muito baixos.
E que perspectiva se apresenta para a América Latina em matéria de riscos de catástrofes?
Maskrey - Em nível absoluto, é muito difícil, na América Latina, que ocorram desastres da escala que houve na Ásia. E isso em função do ordenamento territorial, da densidade de população e de outros fatores. Não há concentrações de população da magnitude que há na Ásia em áreas expostas a desastres. No entanto, em termos relativos, se expressarmos as perdas como uma proporção da população e da economia, estaremos sim em um nível muito vulnerável a desastres importantes. Nesse sentido, as 25 mil pessoas que morreram por causa do furacão Mitch na América Central em 1998 equivaleriam a um milhão de pessoas morrendo em uma área densamente povoada da Ásia.
Mas então o risco é muito elevado.
Maskrey - Mas, em termos comparativos, a América Latina não está tão mal como outras regiões. Em alguns aspectos, ela foi pioneira na redução de riscos. Se eu a comparar com a Ásia, aqui estamos talvez 10 ou 15 anos na frente, em termos de manejo de alguns processos de risco. Mas continua havendo processos de ocupação e ordenamento territorial caóticos, continua havendo problemas de destruição de ecossistemas importantes que amortizam os efeitos das ameaças e continua havendo grandes desigualdades e pobreza. E isso que não está sendo resolvido poderia levar a problemas maiores no futuro.
Diante da magnitude dos riscos, o cidadão comum fica reduzido ao lugar de espectador, mas ele tem, junto com as autoridades, sua responsabilidade, não é verdade?
Maskrey - Os países e as cidades que obtiveram mais êxito na gestão dos riscos são os que cumprem duas condições importantes: uma é ter governos competentes que respondem às necessidades da sociedade. E a outra é contar com uma sociedade civil forte, ativa e organizada, capaz de articular de uma maneira coerente suas necessidades. Se não se cumprirem as duas condições, e só há um lado da laranja, as coisas não funcionam bem. Então, sim, a sociedade tem um papel importantíssimo, fazendo chegar ao governo as necessidades dessa matéria de um modo forte e responsável. Sem isso, é muito difícil que se obtenham avanços.
O problema ambiental mostra a face prejudicial da globalização?
Maskrey - Um amigo colombiano, vulcanólogo e sismólogo me mostrou que o maior desastre que aconteceu no mundo, que ocorreu em princípios do século XVII e que não foi o famoso tsunami de Lisboa, foi a erupção de um vulcão bem menor no sul do Peru, um vulcão quase anônimo e anódino, que causou 1.500 mortos no Peru, mas, no ano seguinte, morreram mais de dois milhões de pessoas na Rússia. Quando os vulcões erupcionam perto do Equador, há uma tendência de que as cinzas circulem para o outro hemisfério. E isso provocou que, na Rússia e em boa parte do hemisfério norte, ficassem sem colheita, e mais de dois milhões de pessoas morreram de fome. Como você vê, trata-se de problemas que sempre foram globalizados.
(Por Claudio Martyniuk, Clarín / IHUnisinos, com tradução de Moisés Sbardelotto, 13/09/2009)