Enquanto Philip Lolua aguarda sob uma árvore para receber uma concha de alimento, ondas de calor sobem do solo desértico, dificultando a visão nítida das carcaças de animais mortos espalhadas à frente dele. Grande parte de seu pasto verde virou poeira. Seu rebanho de cabras, ovelhas e camelos morreu de sede. Lolua conta que seu filho de três anos morreu de fome há poucos dias. E ele próprio aparenta estar perto da morte. "Se ninguém vier nos ajudar, vou morrer aqui mesmo", disse.
Uma seca devastadora assola o Quênia, matando gado, plantações e crianças. Ela está provocando tensões nas favelas e conflitos étnicos no interior do país, onde as comunidades lutam pelos últimos trechos remanescentes de pasto fértil. Os dois corações da economia queniana, a agricultura e o turismo, estão igualmente em risco. Os famosos grandes animais de caça que turistas viajam milhares de quilômetros para ver têm morrido de fome, e a pitoresca savana hoje está pontilhada por um número incomum de ossadas esbranquiçadas pelo sol.
Etiópia. Sudão. Somália. Esses países viraram quase sinônimos de seca e fome generalizada. Mas o Quênia? O país é um dos mais desenvolvidos da África e possui uma economia normalmente forte, inúmeros escritórios da ONU e milhares de funcionários de entidades humanitárias.
A comunidade humanitária no país vinha prevendo o desastre havia meses, dizendo que as chuvas mais uma vez haviam deixado de vir e que isso poderia ser prenúncio da pior estiagem em mais de dez anos. Mas o governo queniano, paralisado por disputas internas e manobras políticas, pareceu fazer pouco caso dos avisos. Funcionários do governo chegaram a ter seus nomes envolvidos em um escândalo de venda ilegal de milhares de toneladas das reservas nacionais de grãos, no momento em que a fome se aproximava.
Até agora, não teve início uma operação internacional de assistência em grande escala para evitar a fome em massa, ou, pelo menos, não começou na escala que seria necessária. O Programa Alimentar Mundial da ONU declarou recentemente que quase 4 milhões de quenianos -cerca de 10% da população- estão urgentemente necessitados de comida.
Mas os países doadores têm demorado a reagir, e um apelo emergencial liderado pela ONU para angariar US$ 576 milhões não conseguiu até agora reunir metade desse montante. Parte da razão disso pode ser o sentimento crescente de decepção com os líderes quenianos. Eles vêm sendo pressionados por embaixadores ocidentais -e seus próprios cidadãos- para reformar o Judiciário, a polícia e a comissão eleitoral. Manifestações nesse sentido se seguiram a uma eleição desacreditada em 2007, que desencadeou uma onda de violência com mais de mil mortos.
Mas os políticos quenianos parecem estar mais preocupados em posicionar-se para a próxima eleição, em 2012, que em arrumar a confusão resultante da última. Poucas reformas foram efetuadas até agora, e a corrupção corre solta, como deixou claro o escândalo de grãos que está sendo investigado atualmente. "Num momento como este, precisamos da confiança dos doadores", disse Nicholas Wasunna, assessor humanitário do grupo World Vision. Para ele, os doadores podem sentir-se repelidos "pelo aspecto político do país".
As terras áridas do norte do Quênia têm sido as mais atingidas. Em alguns vilarejos, não chove há anos. Mas a seca já virou um problema nacional. O preço do milho e do trigo subiu tanto que os moradores de Baringo, no vale do Rift, vêm se alimentando de cactos. Em Nyeri, centro do país, algumas pessoas estão recorrendo à ração para porcos. Na capital, Nairóbi, falta água corrente por uma semana a fio mesmo em bairros nobres da cidade. A eletricidade no Quênia vem de hidrelétricas, de modo que menos chuva também significa menos luz.
O governo queniano começou a reagir, organizando entregas de alimentos a áreas atingidas pela fome. Mas algumas autoridades nacionais parecem recusar-se a enxergar os fatos. Chaunga Mwachaunga é o líder distrital interino de Lokori, cidade do norte do Quênia onde a seca é especialmente aguda. Diante de relatos segundo os quais dezenas de crianças em sua região teriam morrido de fome recentemente, ele reagiu agressivamente.
"Fome? Como podemos saber que morreram de fome?", falou. "Sei que não há comida suficiente, mas podemos assegurar que, enquanto o governo queniano estiver aqui, ninguém vai morrer de fome. Mostre-me os atestados de óbito." Mas é difícil encontrar atestados de óbito numa região de poucos hospitais.
Crianças da tribo Turkana trajando pouco mais do que um lençol caminham 30 km para conseguir três litros de água. Homens Turkana vêm abandonando suas famílias, simplesmente sumindo no deserto, porque não suportam a vergonha de serem incapazes de alimentar seus filhos.
Igualmente preocupante, talvez, é o conflito étnico crescente. Os Turkana chamam seus vizinhos, os Pokot, de "o inimigo" e dizem que choques violentos irromperam recentemente em torno das áreas de pastagem, que não param de encolher. Uma mulher Turkana disse que "o inimigo" matou seu filho, roubou todos seus animais e a expulsou de sua terra.
Meteorologistas preveem a chegada de chuvas até outubro e dizem que elas podem até provocar o extremo oposto das condições atuais. Está previsto outro ciclo do El Niño, que, após anos de seca que converteram a terra numa crosta dura como pedra, pode causar inundações.
(Por Jeffey Gettleman, The New York Times / Folha de S. Paulo, 21/09/2009)