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marina silva
2009-09-15

A pré-candidatura à presidência da república da senadora Marina Silva tem muitos aspectos positivos. Mas até que ponto ela poderá manter fidelidade aos seus compromissos desta vez? Esta é uma das questões por trás do novo, que ela encarna. A presença da senadora Marina Silva na disputa pela presidência da república em 2010 fará bem ao Brasil. Se não chega a ser uma completa novidade, sua candidatura pode ser uma surpresa e traz consigo um mistério a ser decifrado. Ela é nortista e nortista algum conseguiu ser presidente. Não consegue nem ser diferenciado do nordestino (da Bahia para cima tudo é estigmatizadamente Norte, sem ser inteiramente Norte).

O paraense Lauro Sodré foi o único que chegou a ser candidato, no início do século XX. Não emplacou, apesar de ser então uma legenda no Exército, no positivismo e na elite republicana. A Amazônia é a única das regiões brasileiras que ainda não foi berço de presidente. Confirmar sua candidatura já será uma façanha para Marina. Ela entrou de vez para a história num país de exclusão regional e social ainda dramática.

Ela é negra, é mulher, sem beleza física, foi alfabetizada tardia, e pelo Mobral, exerceu uma profissão vilipendiada, a de empregada doméstica, se tornou seringueira, foi professora (outro ofício maltratado no Brasil), era pobre até entrar na política (na qual não enriqueceu, ao contrário da prática contumaz), tem as marcas de doenças desgastantes (malária, leishmaniose, contaminação por metais pesados), sua aparência (aos 51 anos, com quatro filhos) é de fragilidade, e é de esquerda. Alguns desses componentes já bastariam para inviabilizar sua progressão pelas camadas do poder, mas ela subiu até próximo ao topo com essa combinação toda - e mais alguma coisa.

Tal biografia merece respeito e admiração, mas ela é apenas um pouco mais complicada do que a de Lula, que é outro Silva, onomástica da universalidade subalterna no Brasil. Trajetória como essa pode ser irrepreensível remissivamente, mas pode ser anulada pelo dia seguinte à conquista do máximo de poder, como aconteceu ao atual presidente. Os donos de perfis desse tipo costumam fazer tudo para transformá-los em lendas e mitos, prevenindo as checagens e anulando as críticas.

Quando se pensa em Abraham Lincoln, logo vem à mente sua estampa de lenhador, não a figura de advogado, que foi sua verdadeira profissão. O mesmo acontece com Lula, legítimo homem do povo, porque operário metalúrgico, não a do político que fez preparação em tempo integral (e subsidiada) durante quase três décadas, caso inédito na história brasileira. Sem ter que trabalhar mais em outra coisa.

A passagem de Lula pelas linhas de produção foi meteórica se comparada com sua longa presença em cargos de mando e direção, a partir do comando sindical. As marcas da primeira etapa se tornaram vagas e difusas. O que se evidencia como definitivo no presidente é o seu aprendizado nas artes e manhas da relação com o poder - do minúsculo escaninho ao máximo compartimento. Lula não leu uma dúzia de livros, mas o que fez, viu e ouviu corresponde a um curso de doutorado (de viés pragmático) em práxis política. Ele não é mais povo faz tempo: pertence à elite, não só pela topografia do seu corpo in situ, mas pelo que gira pela sua cabeça. Lula virou intelectual, não exatamente por osmose, que muito inteligente ele é, mas por absorção utilitária. Por sagacidade, a qualidade máxima do político.

Marina também é uma intelectual, que se foi refinando a cada patamar da sua ascensão. Ela perdeu a naturalidade de ser e de se expressar. O que diz é calculado, medido e pesado. Suas palavras não saem de sua boca para girar soltas pelo ar: elas se encaixam numa visão de mundo e numa estratégia que tem como objetivo alcançar o máximo de poder possível. Por enquanto, para dessa maneira transformar o país e, se possível, um tanto do mundo também. Mas Lula também pensava assim antes de realizar sua utopia, cada vez mais pessoal e menos coletiva.

A concepção de poder - principalmente de Lula, mas também de Marina - não é completa. Sua maior deficiência resulta da distância (e quase desconexão) entre o que querem e o que é preciso fazer para que suas pretensões se realizem. Em muitas situações, percebe-se que não sabem como fazer o que querem fazer - o tal do know-how dos americanos. Pode-se ter uma idéia dessa deficiência imaginando-se o que teria acontecido com o Brasil se Lula tivesse vencido Collor em 1989. E não venceu porque ainda era mais natural do que devia ser, sucumbindo à armadilha montada com seu drama pessoal, da filha concebida fora do casamento e mantida na clandestinidade.

O que seria de Lula sem o Plano Real, no qual sua equipe não pensou e, por isso, não tinha condições de conceber? O que faria Lula sem contar com a estabilização da moeda (ou a criação de uma moeda para valer, da qual não dispúnhamos até então) e o controle da inflação até um nível civilizado? A impressão que tenho é de que não haveria largada para esses decisivos processos se Lula assumisse a presidência em 1990.

Claro que Collor também não realizou esse start, vencendo a inércia. Mas o político alagoano não era novidade alguma. Era apenas mais um representante da elite - e da mais antiga e das piores elites brasileiras, da cana-de-açúcar nordestina. A vitória de Lula antes do Real seria seu fim. E um pouco mais o nosso também.

Não deve ser por mera coincidência que, na entrevista concedida à revista Veja, Marina incluiu o demoníaco (para o PT) Fernando Henrique Cardoso entre os "mantenedores de utopia", ao lado de Chico Mendes, Florestan Fernandes e o próprio Lula. A maior credencial com a qual Marina pode se apresentar à disputa presidencial do próximo ano, com potencial de vitória, é também a de merecer um lugar no panteão desses "alimentadores de utopia".

Depois que FHC fez a reforma do país por cima (valendo-se de pessoas que sabiam como executar essa engenharia, por intimidade com a mecânica do poder), comprometendo-a logo em seguida com seu projeto pessoal de reeleição, veio Lula com os ajustes e compensações sociais, comprometidos por um incontrolado patrimonialismo estatal. As distorções patrocinadas pelo sociólogo e pelo metalúrgico oneram o desenvolvimento do país, que seria fluente sem elas, mas não o entravaram. Distorcido, desajustado, conflagrado, ainda assim o Brasil cresceu, embora talvez para o impasse no futuro.

Marina poderá ser a nova correção de rumos, aparando as arestas nas extremidades desse bólide continental e aplicando os excessos em benefícios do centro, de uma moderação entre o crescimento acelerado (do qual Dilma Rousseff se propõe a ser o capitão-do-mato, com seu cenho enfezado e carência de alegria), ou um novo capítulo do desenlace entre a utopia proposta e a falta de meios (e competências) para aplicá-la?

Mesmo que a hipótese mais pessimista forneça a resposta para essa dúvida, é melhor que haja surpresa e mistério na sucessão no poder do que mais um acerto atrás do palco, nos bastidores. Por ser um país novo, o Brasil precisa de novidades para acreditar que haverá luzes no dia seguinte - ou que elas não sejam o anúncio do trem em sentido contrário, que fizemos questão de ignorar quando começamos a entrar no túnel escuro da incerteza. Faz tempo, naquele tempo.

(Por Lúcio Flávio Pinto *, Adital, 14/09/2009)

* É jornalista no Pará e publica o Jornal Pessoal (JP)


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